Livros 2024 #19 - Não fossem as sílabas do sábado (2022)


Quando um autor pega um roteiro inusitado, e sabe desenvolver uma história que saia interessante, é um acontecimento. O abandono parental, tão em voga, dos pais que saem pra buscar cigarro e jamais voltam, contrasta com a proposta da Mariana Salomão Carrara, um romance onde uma mulher grávida perde o marido em um acidente — quando o vizinho de cima ao se suicidar acaba caindo em cima do primeiro, matando ambos.

Por ser um livro que trata do luto, ele o faz de uma maneira bem peculiar. Afinal é isso o que acontece: as fases de negação, raiva, o pensamento mágico, todos acabam em segundo plano nesse livro, pois acho que a maior lição que ele passa é que estar vivo é entender que as coisas se arrumam por si próprias. O problema pode demorar a encontrar uma solução. Pode ser que nem mesmo uma solução seja encontrada, mas sempre haverá um dia depois do outro.

Somos apresentados a Ana, que enquanto trazia um quadro de um pôster de um filme que ela gostava para pendurar em seu apartamento, pede encarecidamente para que seu marido, André, venha correndo para ajudá-la com aquele trambolho. Ele sai no momento exato que Miguel, o vizinho de cima, se joga da janela para se matar e acerta André no térreo, levando os dois ao óbito.

O que Ana não esperava é que Madalena, a esposa do Miguel, começa a entrar na sua vida. Não como um amor lésbico — especialmente nessa época onde todo mundo supõe que se existe uma amizade entre duas pessoas do mesmo gênero, é porque possuem um caso homoafetivo às escuras — mas genuinamente como uma amiga, uma mulher enlutada, que sente tanto a culpa por ser a esposa do cara que acabou matando um outro homem que era um bom companheiro e seria pai, como também para achar uma forma de tapar o buraco que a falta de seu companheiro faz.

E nessa de tentar seguir em frente, a vida delas encontra algo em que possam se sustentar, e eventualmente se assentar. A filha de Ana nasce, e as duas amigas se revezam na criação da Catarina, enquanto vão tendo seus namorados, seus momentos ruins, brigas, mas também sempre presentes uma na vida da outra, que até o momento do acidente que vitimizou seus companheiros eram desconhecidas.

Eu sou fã incondicional da Mariana Salomão Carrara e ela, que é só dois anos mais velha que eu, tem amadurecido bastante como escritora. Não digo que a qualidade melhorou — pois essa sempre foi primorosa — mas o amadurecer faz com que o diamante vá sendo lapitado. Joia essa que talvez nunca chegará numa forma final, onde uma nova face é talhada de um lado, a forma geral pode até mesmo mudar, mas o que há de mais valioso nisso é ver que não apenas continua o mesmo diamante, mas conforme o tempo vai passando vai ficando diferente.

O que há de similar é essa capacidade ímpar dela de nos colocar na cabeça da protagonista. Foi assim com a jovem M. Carmen, a idosa Aurora, e agora a jovem adulta Ana.

Enquanto outras autoras, como a Joan Didion conseguem tornar concreto o sentimento, ou a Aline Bei sabe transpassar aquela angústia do fundo da alma, ou a Carla Madeira nos presenteia com os melhores coadjuvantes que existem, a Socorro Acioli sabe fazer qualquer história ser interessante, a Mariana Salomão Carrara é a escritora do pensamento, do mental.

E para isso ela une a narrativa com fluxos de pensamento, e faz de um jeito tão bom que não nos confunde ou deixa a história chata. Enquanto a personagem conta o que aconteceu com ela, mostrando os factos, junto ali ela manda um pensamento, às vezes algo aleatório, uma sensação, ou uma reflexão, não importando se é algo imprescindível ou descartável para a história, mas que traz humanidade para a obra, pois é exatamente assim que nossa cabeça funciona: construindo as coisas sem linearidade.

A Sally Rooney, uma das escritoras do momento, tenta isso, mas na minha opinião falha miseravelmente (eu não gosto da Sally, desculpaê). Talvez o que falta na irlandesa seja Lygia Fagundes Teles.

Já vi várias vezes a Mariana falando no quanto se inspira na Lygia. E isso não é pra qualquer um. Eu só fui ler meu primeiro da Lygia esse ano, e nem era "As meninas" ainda. Mas assim como a Lygia é essa mestra em transformar pensamentos em livros, a Mariana Salomão Carrara é a sucessora no século XXI de todo esse legado. A inspiração é evidente!

Dizem que as coisas na vida acontecem na hora certa. Ainda bem que eu tive contato com a Lygia (obrigado, Paula!) antes de ler e conseguir fazer essa associação com a obra da Mariana, e foi durante a minha mais recente viagem ao interior que tive paz e muito tempo de sobra pra me debruçar sobre sua obra. 

Como eu disse no exemplo acima do diamante, as obras da Mariana Salomão Carrara possuem essas características que fazem elas serem o que são. A diferença são os planos de fundo, personagens, e formatos que a obra se dá. Assim como o Koh-i-Noor, o Cullinan, e o Hope são todos diamantes, cada um possui a sua peculiaridade.

Eu sinto que a maturidade dela também é visível. A coisa que mais gosto é como a Mariana se sente confortável em brincar até mesmo com as normas do português — como um pintor que sabe pintar muito bem, mas por conhecer tão bem o material se arrisca em uma técnica não ortodoxa. Pois é exatamente isso, as palavras são o pincel e a tinta dela, onde ela faz das páginas do livro sua tela.

Talvez (suposição, apenas) o facto de eu ser um fã faça essa resenha extremamente enviesada? COM CERTEZA. Mas acho que um trabalho de um fã é exatamente isso: mostrar que existe algo além de uma análise de um crítico. Por sermos movidos pela admiração, podemos falar com paixão de algo que nos toca o coração. Beba um gole a cada "ão".

Nos vemos no próximo livro! O recém-lançado "A árvore mais sozinha do mundo"!

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