Livros 2024 #21 - Você nunca mais vai ficar sozinha (2020)


Me deparei sem querer com esse livro na estante da biblioteca. Percebi que meu gosto literário hoje está cada vez mais se distanciando do autor homem-branco padrão. Livros escritos por eles não me prendem tanto quanto escritoras mulheres, por dezenas de motivos. E nessa busca por uma nova autora feminina me deparei com Tati Bernardi e sua obra: um misto de traumas infantis não superados, uma relação difícil com a mãe, e a difícil maturação onde quem era filha dá lugar à mãe.

Uma das primeiras reflexões que esse livro me trouxe é sobre o nível do privilégio de nós homens. Eu estou com trinta e seis anos atualmente, mas se eu quiser esperar mais quinze ou vinte anos posso ter um filho, se eu tiver o mínimo de saúde. Mas quando se trata da vida de uma mulher, nos deparamos com Karine: uma jovem mulher, decide que chegou a hora de ser mãe aos trinta e seis, percebe o quanto sua vida muda em apenas alguns meses. Aquele novo ser que começa a surgir dentro de seu ventre é quase visto como uma doença, pois as mudanças não eram apenas no seu corpo, mas também na sua rotina, e em como a sociedade a veria a partir de agora.

Eu estava fazendo filho até quando quis terminar com pai do meu filho, como terminei com todos os homens que conheci, para continuar sozinha e triste infantil e poder ficar para sempre com a minha mãe. Porque minha mãe terminou com todos os homens para poder ficar para sempre com a minha vó e também para poder ficar eternamente comigo.

Durante as várias visitas para realização de exames de pré-natal, Karine se encontra com Beth, a enfermeira que lhe servia quase como um divã de psicanálise. Apesar da Beth ser uma personagem sem praticamente nenhuma ação no livro, sendo apenas a ouvinte, é com ela que Karine desabafa sobre todas suas lamúrias. A mulher que levava os homens para a pizzaria na porta de casa, e depois para o abatedouro (o apelido que deram ao seu apartamento) agora se depara com um futuro cheio de incertezas, querendo apenas um abraço e que dissessem que gravidez era mesmo difícil, e lhe respondesse se ela conseguiria voltar a trabalhar, ser magra, livre, e ter de volta uma vida sexual ativa.

O jeito que a Tati Bernardi criou o plano de fundo do livro é excelente. Karine, uma mulher branca, morando no Belenzinho, na zona leste de São Paulo, mas bem perto do centro da cidade, vem de uma família de classe média privilegiada, acesso a universidade e viagens ao exterior, com muitas coisas que eu, sendo uma pessoa de periferia, via como algo bem longe da minha realidade. Mas não é por ser alguém de uma classe superior que não desenvolvi empatia — até porque os dramas familiares podem ser compartilhados por todos os que possuem famílias.

"É uma menina, mãe", e ela respondeu na lata, sem pensar, apenas a frase: "Você nunca mais vai ficar sozinha". Minha mãe acha que mulher que tem filha mulher nunca mais se sente só. Fiquei aliviada e horrorizada. E depois só horrorizada. Como alguém vai escrever um roteiro premiado de cinema se não ficar sozinha? Como alguém vai deitar no chão do banheiro com as pernas apoiadas na borda do banheiro até passar angústia se não ficar sozinha?

A personagem que dá gás ao livro é sem dúvida é a mãe de Karine, a Carmine. Apesar da criação rígida que ela tem dela, em diversas partes a mãe é a quem corre no socorro da filha. Essa mãe sofria de uma dor renal crônica, e volta e meia com essas crises ficava debilitada, vomitando de dor pelos cantos da casa. Divorciada, ela apresenta seus namorados mais firmes para a filha. E mesmo nas lembranças de Karine pequena, ela é testemunha das diversas vezes que sua avó veio atender aos gritos de socorro de sua mãe.

Karine trabalha escrevendo discursos para eventos, mas seu grande sonho é ser uma roteirista de cinema. E essa aspiração dela a gente vê durante todo o livro, pois todas as lembranças ali descritas são sempre cheios de dramaticidade e cinematografia. Cada história que ela viveu com um namorado ou paquera rende ótimos capítulos também, cada um com sua peculiaridade. 

"Nunca dê o cu minha filha, homem tem nojo de mulher que faz isso", foi com essa frase que minha mãe falou comigo sobre sexo assim que entrei na adolescência. Eu ainda era virgem. "Eles gostam de mulher fresca, e mulher fresca nunca vai transar desse jeito, entende?" (...) Sem saber que HPV seria mais comum do que rinite, quando um dia meu exame acusou pequenas feridas no colo do útero, minha mãe logo quis saber se eu tinha feito sexo anal. Porque na cabeça dela tudo de mais errado e sujo e gerador de doença do mundo era o ânus. Eu não tinha feito sexo anal. Então ela me perguntou: "Mas deixou dar uma brincadinha por lá, não deixou?"

Outros coadjuvantes são extremamente curiosos, como as tias de Karine, que ela as chama de "tia perseguida" e "tia do gás". A primeira é chamada por ela assim pois sofria de síndrome de perseguição, e por conta disso era cheia de paranoias e manias bem peculiares. Já a segunda é chamada por ela assim pois um dia ela ameaçou que iria se suicidar, e colocou a cabeça dentro do forno expelindo gás para se sufocar. Esta acabou sendo salva pelo pai.

Mais do que um livro sobre gravidez, reviver as memórias que ela possui com sua mãe, justamente nessa época tão sensível e complexa de uma mulher, é o registro de um rito de passagem. Karine, que sempre fora a filha, a que era alvo de toda atenção de preocupação, livre sem a responsabilidade de um novo ser humano, a que colecionava tanto memórias boas quanto traumatizantes com sua mãe, agora se vê nessa transformação de deixar de ser "a filha" para se tornar "a mãe". E esse processo todo, assim como amadurecer, é difícil e doloroso, uma coisa que ela não esconde.

Uma vez numa terapia cognitiva para perder o medo de avião descobri que eu não tinha medo de voar, e sim de me distanciar da minha mãe. Jamais ficava nervosa pra voltar pra casa, só pra sair. Não queria levar minha mãe na viagem nem ficar na casa dela e abrir mão da viagem. Não queria sequer telefonar para ela. Eu já tinha 30 anos! Mas minha angústia tinha tudo a ver com me distanciar dela.

A escrita da Tati Bernardi foi uma ótima surpresa. Karine é muito mal humorada e ranzinza, mas como ela se abre sobre sua vida de uma maneira tão bem construída, é fácil entender o que a faz ter esse tipo de visão do mundo sobre as coisas. Mas não é apenas de traumas que o livro se constrói, existem muitas passagens bonitas e inspiradoras. Talvez por ser apenas com o seu ponto de vista faz com que nós compremos tudo o que ela diz como verdade definitiva, mesmo sendo apenas o seu lado da história. O jeito que a autora dita o ritmo da escrita é excelente, com várias vezes brincando com o uso de vírgulas, fazendo uso de repetições, e sem muitas expressões nichadas. No final das contas Karine é uma revoltada com razão, foi essa impressão que eu tive.

Para concluir, adorei o livro. Acho que o li rapidinho, em dois dias no máximo. No primeiro dia eu cheguei quase na página cem (de cento e trinta e poucas), de tanto que me prendeu! O que não o deixa cansativo é esse morde-e-assopra, essa mistura de lembranças boas com ruins, e reflexões no meio, junto de histórias da família e peguetes, e a aceitação de que sua vida nunca mais será a mesma quando o serzinho que está na barriga vir ao mundo.

E o final então, nem vou dar spoiler. Só vou dizer que CHOREI LARGADO.

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