Livros 2024 #22 - Quarto de despejo (1960)
"Quem tem fome tem pressa". Acho que todos ouvimos isso quando lemos relatos do quão cruel é a fome. Esse livro não fala apenas da miséria e dos flagelos de se viver em uma favela — mas também do quão desesperador é acordar sem ter o que comer, sem uma garantia de que conseguirá fazer todas as refeições, e nos faz refletir no quanto uma realidade que achamos que está perdida no passado é infelizmente presente nos dias de hoje.
Passei uma noite horrivel. Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Por- que eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não tenho açucar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha.
Lula se elegeu pela primeira vez com o objetivo de erradicar a fome no país. E isso não é apenas um sinônimo de altivez de caráter, ou de não querer que as pessoas passem pelo mesmo que ele passou. O aspecto mais cruel da fome é que impossibilita as pessoas de se desenvolverem plenamente. A fome é uma necessidade básica, a vida só pode se constituir quando a mesma é sanada, senão a pessoa fica num ciclo de miséria profundo que não consegue sair dela: afinal a preocupação é sempre se vai conseguir fazer a próxima refeição ou não.
Carolina Maria de Jesus muitas vezes é cultuada como uma das maiores escritoras negras do Brasil. Ela foi não apenas uma visionária por abrir as portas para outras de sua etnia, como também é uma das fundadoras e maior expoente da literatura marginal brasileira. Vivendo na antiga favela do Canindé, nas margens do Rio Tietê, seu livro “Quarto de Despejo” é um retrato real e cruel de todas as adversidades da vida de uma favelada.
Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos. A comida no estomago é como o combustivel nas maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciando um lindo espetaculo. E haverá espetaculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.
A autora, que sempre foi uma voraz leitora, relembra em diversos trechos de sua obra sua paixão pela literatura. Essa que teve um papel crucial em sua vida, pois a incentivou a escrever pequenos diários, com relatos pessoais de seu dia-a-dia em uma das comunidades mais carentes de São Paulo no final da década de 50. Foi depois que ela conheceu um jornalista (que também é retratado no livro) que teve a chance de publicar suas obras. A mesma até conseguiu um pouco de dinheiro para conseguir deixar a favela, se instalando em um sítio no bairro de Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. Mas apesar de todo seu peso e pionerismo, continuou vivendo na pobreza mesmo depois do reconhecimento do público.
Para Carolina a favela é o “quarto de despejo” da cidade, onde é jogado tudo aquilo que a sociedade mais despreza. É lá onde pessoas humildes de todo o país vão buscar moradia, num local onde as necessidades são muitas e o auxílio do estado é escasso. Coisas simples como ter água para cozinhar ou se lavar se tornam desafios, pois a única opção é competir pelo espaço com a única torneira disponível para toda a população. Até mesmo um simples sabonete para se lavar é custoso, e em muitos trechos Carolina lamenta que acabe tendo que andar suja para catar papelão rua.
Quando descarregam os caminhões os tomates caem no solo e quando os caminhões saem esmaga-os. Mas a humanidade é assim. Prefere vê estragar do que deixar seus semelhantes aproveitar.
Acredito que para pessoas que não sejam, ou não possuam uma relação estreita com a periferia, ache a literatura de Carolina medíocre. Eu citei trechos nesse post de sua obra na íntegra, e todas elas foram escritas com os mesmos erros gramaticais originais. Acho que nem preciso entrar na questão de que sua impossibilidade de avançar nos estudos é a causa por detrás disso, mas esse detalhe não atrapalha em nada na leitura. Isso traz uma camada a mais de realismo, da mulher pobre da periferia.
O que eleva Carolina como uma das grandes autoras brasileiras é sua escrita profunda. Escrito todo em forma de diários, com registro da data e os acontecimentos, a autora consegue nos presentear no meio de tanta dificuldade com trechos que são de apertar o coração. Enquanto eu lia ficava muito chocado com tudo aquilo retratado, pois além de uma vida difícil, ela escreve de um jeito que arrebata nosso coração. Quando ela bota no papel suas reflexões não conseguimos sentir outra coisa a não ser admiração pelo elevado nível de sua prosa.
Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?
A forma que Carolina retrata a vida na favela é real. Existe todo o tipo de pessoas que a sociedade exclui: famílias perdidas no alcoolismo, mães solo lutando para sustentar seus filhos, muita fofoca (muitas delas replicadas na fila para se buscar água), e violência. Esse último traz relatos bem chocantes de brigas bem feias que ocorriam ali, sejam de maridos espancando suas esposas, ou mesmo homens armados de facas indo pra cima de outros na rua, ou até diversos momentos em que a própria Carolina é vítima de roubos dentro de seu barraco.
Se dormir com a barriga vazia é difícil, mais ainda é quando se tratam de não ter o que dar de comer aos filhos. Essas partes doem ainda mais. Os filhos da Carolina são outros personagens bem retratados em seu livro, onde ela sofre por não poder dar coisas simples, como um sapato para Vera Eunice, as vezes que João apronta e lhe dá dores de cabeça, ou no frágil José Carlos que em alguns trechos luta contra doenças que adquiria ali naquele meio.
Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetaculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso. Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetaculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh'alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio os meus agradecimentos.
Como alguém que está há anos lutando contra depressão, eu não indicaria esse livro se a pessoa está passando por algum momento difícil. É um relato muito cruel, houve diversos momentos que toda aquela imagem dela passando fome, o desespero em não conseguir dar de comer aos filhos, ou a dor de dormir de barriga vazia mexeram comigo profundamente. Como eu estava em um momento menos pior, decidi dar uma chance para essa obra que eu estava postergando há tempos.
Livros desses me ajudam a lembrar do que é importante na vida. Eu não conseguia olhar para meu prato de comida da mesma maneira, pensava em como uma coisa tão essencial — que é ter um alimento para matar a fome quando passamos por ela — é para muitas pessoas um artigo raro. E ainda mais por pensar que muitas vezes essa é uma situação vivida por inúmeras pessoas negras, tão injustiçadas nessa sociedade racista em que vivemos.
A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei dos juizes que é Deus. Foi em janeiro quando as aguas invadiu os armazens e estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guar- da esperando alta de preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.
Acordar um dia e não ter o que comer, sair para catar papelão para reciclagem, e ver comida boa sendo jogada no lixo. Em diversos trechos Carolina se revolta pelo quão cruel é a sociedade capitalista, onde alimentos bons são jogados no lixo, e não podem ser oferecidos para pessoas que estão passando fome. A mesma comenta que os animais, que reviram esse lixo, são melhores tratados do que outros seres humanos, que para que não revirem o lixo em busca de alimentos acabam sendo misturados com creolina, ou com outros alimentos podres, para que isso não aconteça.
Só para se ter uma noção: houve dias em que Carolina conseguia por volta de 20 cruzeiros catando papelão. Achei uma calculadora aqui pra conversão e parece que 20 cruzeiros em 1958 equivalem a aproximadamente R$ 7,27 atuais. O que a gente consegue comprar com esse valor irrisório hoje em dia, a gente consegue se alimentar por um dia inteiro? Isso ajuda a trazer para a nossa realidade o quão desumano é a fome. E pensar que o relato da Carolina continua tão atual nos dias de hoje, com um antigo presidente que mergulhou nosso país na desigualdade e miséria, fazendo-nos voltar ao mapa da fome, e ficou durante anos negando que ela existia com os índices mostrando o contrário.
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.
A luta contra a fome é uma luta que não pode parar. Histórias como a de Carolina devem ficar no passado para nos tornarmos um país digno para todos que aqui habitam.
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