Livros 2024 #14 - Corpo desfeito (2022)
Li esse livro no final de maio, mas precisava de um tempo para digeri-lo. Não conhecia a autora, e posso afirmar aqui que acho a Jarid Arraes uma das grandes dessa nova geração. Quando a gente se joga na prosa da Jarid é como se a gente fosse rendido. Esse livro deixa a gente sem reação, sem acreditar no tamanho da crueldade que se é capaz de fazer. A gente fica com a sensação de querer entrar ali e buscar algum tipo de justiça, mas nada a gente pode fazer, pois já fomos rendidos — e devemos aceitar para onde a autora vai nos levar.
Essa é a dança da culpa. É assim que o corpo passa mensagens contraditórias. Uma delas diz que você não precisa sentir remorso, não deve tomar para si a responsabilidade do sofrimento que não causou, muito menos tem que conter suas vontades e seus desejos. Mas a outra mensagem é tão forte e tão bem preparada, a que nega tudo o que foi dito antes. Ela advoga pela vergonha. A culpa é a tortura que puxa cada lado de seu corpo para direções opostas. E te rasga ao meio.
A gente é levado para uma vilarejo do interior do nordeste, onde a pobreza convive junto com o conservadorismo, um reduto onde a religião é o que dita as regras dentro das famílias. Lá conhecemos Amanda, uma jovem filha de uma mãe solo, vê sua mãe Fabiana, lutando para criá-la com dignidade, mesmo tendo que se revirar em diversas carreiras e jornadas de trabalho para botar o alimento em casa.
Apesar das constantes críticas da sua avó Marlene, contra sua mãe, por ter "aberto as pernas" cedo demais, e encarado uma gravidez indesejada, a mãe de Amanda consegue finalmente voltar a estudar, e iria pela primeira vez comprar um bolo para celebrar o aniversário de doze anos da Amanda.
A morte de mainha foi uma traição. Com esse tipo de morte você não se relaciona. Esse é o preciso tipo de ir que torna a morte, para aqueles que sobram, uma negação do que se entende como natural. Nem morte morrida, nem morte matada. Morte traída.
Porém, se a vida estava difícil, ela piora de um jeito inesperado, pois logo nesse início de livro a mãe de Amanda morre, atropelada, deixando a guarda a única filha nas mãos da avó. Isso acontece logo no segundo capítulo do livro, e a partir daí a coisa vai só ladeira abaixo.
Apesar do livro parecer um relato distante, ele se passa agora, em 2005. Acho que no meu imaginário eu pensava em algo se passando ali no começo do século XX, mas o que o livro mostra é que esse tipo de coisa ainda infelizmente é muito atual nos vilarejos dos sertões desse país. Um local onde não apenas o fervor religioso é o que muitas pessoas só tem para se apegar, como ainda existe muita violência doméstica, homofobia, miséria e atraso.
Mainha vivia tão ocupada, sempre com cara de quem vai gritar a qualquer instante, mas nunca grita. Engole, faz descer pela garganta e morar na barriga. Depois reclama de dor no estômago. Porque já estava treinada para deixar queimar o interior com as reticências e jamais expulsar o que seria inconveniente para os outros.
Mesmo tendo uma escrita muito realista, mostrando o mundo como é em sua maneira nua e crua, existem diversas partes onde Jarid mostra uma poética dela, recheado do delicioso linguajar nordestino, com trechos que tocam no fundo da nossa alma, usando as palavras com aquela maestria que apenas os grandes autores de cordéis conseguem fazer. Jarid Arraes é essa autora que consegue unir o melhor dos mundos de uma novelista com seu talento único como cordelista, enchendo o livro de trechos profundos ao mesmo tempo que nos esfrega essa realidade que achamos que não existe nos dias de hoje.
Outra coisa que o livro escancara é a fragilidade das mulheres. Por terem protagonistas apenas femininas, percebemos o quão cruéis são as escolhas que elas são obrigadas a tomar por estarem todas imersas em um mundo profundamente machista e patriarcal. São mulheres que não separam de maridos alcoólatras e violentos, pais ausentes, a religião usada como doutrinação patriarcal, e todo tipo de perseguição e abusos retratados.
Quero ser outro tipo de gente, um tipo que ninguém consegue trancar no escuro, nem forçar a tirar a roupa, e eu já vivo tão acostumada a isso, como é que se acostuma a esse tipo de coisa? Por que eu não grito? A vizinha dona do galo com certeza ia escutar. Mas eu só choro.
Outro detalhe feminino que o livro explora é o amadurecer precoce. Numa sociedade estruturada onde os meninos brincam, e as meninas são ensinadas e cuidar da casa desde criança, a gente fica triste ao ver a infância de Amanda deslizando pelos seus dedos. Uma menina púbere, tendo que cuidar de si mesma, da avó, e ao mesmo tempo com todas aquelas mudanças no corpo acontecendo, incluindo a desabrochar de sua sexualidade que, além de tudo, vai de encontro com todo o conservadorismo ali do seu meio.
Um livro forte, desses que eu ficava emocionado e revoltado com tudo o que eu lia ali. Quantas e quantas vezes eu terminava um capítulo e precisava fechar o livro para processar aquilo tudo? Não conhecia a Jarid Arraes antes, mas agora posso dizer que ela ganhou um fã de seu trabalho!
SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!
A partir da morte da Fabiana, a vida da jovem Amanda vai entrando em buraco em que não se vê o fundo. Essa avó dela, como disse acima, é uma pessoa extremamente religiosa. E um dia ela recebe um "chamado espiritual" da sua filha, que a diz para prestarem reverência à Fabiana, pois ela havia se tornado uma santa. Marlene separa um cômodo da casa de oratório a partir dali, e encomenda uma imagem baseada num retrato da sua filha, e a adorna como se fosse a virgem Maria, e começa a adora-la a partir de então.
Mainha aparecia vestida como santa, com um manto azul-claro que reluzia tanto quanto o da Virgem Maria, e tinha o rosto sereno e descansado. Num deles, mainha explicou para vó que toda aquela culpa precisava de perdão, e que a única forma de ser perdoada estava no esforço para manter uma vida decente e modesta.
Talvez o único homem menos pior seja o Padre Antônio, que tenta de todas as formas parar a velha maluca, não apenas renegando a suposta santidade da filha, como também tentando proteger a pobre Amanda, que não tem como se defender da criação radical da avó.
Não quero passar pano para a avó de Amanda, mas dona Marlene tem um plano de fundo que nos ajuda a entender no que ela se tornou. Uma mulher que acabou se casando com Jorge, um homem alcoólatra e violento, que não trazia o sustento para a casa, e ainda gastava tudo com bebida e amantes. Existe até uma cena onde a velha vai buscá-lo todo maltrapilho, e cagado (literalmente) jogado à rua, e quando questionada do motivo de ainda aturar isso, sua resposta é bem categórica:
Queria saber como vó conseguia continuar com aquele homem, assim, direta com as palavras. E eu percebi que também me perguntava isso, só não tinha articulado com minhas próprias frases. Vó respondeu cochichando. — Tu não tem marido e acha que eu vou jogar o meu fora? Senti muita vergonha por ter escutado aquilo.
E cara, essa resposta é algo tão familiar! Minha própria mãe fala isso, talvez de outra maneira, mas ainda tem esse valor de que tem que ficar com o cara, mesmo sendo o traste que é, pelo resto de toda a vida pois isso é algo além de apenas uma escolha — é um tipo de sentimento, totalmente diferente daquele que muitas pessoas vivem e acreditam hoje em dia, repleto de uma obrigação de ficar para sempre com aquele marido que ultrapassa qualquer limite que a razão tente impor. Uma espécie de honra, mas mesmo no caso da família, é muito mais complexo que isso.
Esse desespero todo da velha é outra coisa que, apesar de parecer algo extremo como é retratado no livro, também me pegou pois é uma realidade na minha família. Minha avó Judite sempre foi muito conservadora, dessas mulheres que cresceram acreditando que a mulher não pode nada, e sempre deve baixar a cabeça para o marido. Minha mãe foi a única filha que se casou, mas minhas tias todas acabaram engravidando sem planejamento — oriundas de um lar onde não se falava sobre sexo, não se ensinava como usar camisinha, e tudo era na base de muita disciplina e privações (que nunca funcionam, aliás).
Pelo que ouço, e até pelo pouco que vi, minha avó meio que achava que a punição para as filhas, que agora seriam mães solo, era que deveriam abandonar qualquer tipo de ascensão social e se dedicarem a serem exclusivamente mães. Afinal, o lugar da mulher é em casa, e a do homem é sair para trabalhar. Uma das minhas tias só foi voltar a trabalhar agora, beirando os cinquenta anos. E a neta da minha avó (minha prima), outra que também acabou herdando esse carma de ser mãe solo, quase acabou sendo forçada a seguir por esse caminho, mas por estar inserida em outro contexto (e ter outra cabeça), conseguiu construir uma carreira e quebrar essa corrente. Mas também não foi fácil, minha avó nunca aceitou que ela fosse trabalhar fora mas quando o dinheiro foi entrando aí a gente já sabe o que acontece.
Então, voltando ao livro, Marlene, que nunca teve uma boa imagem dos homens, sendo agredida por anos por um homem que devia ser seu parceiro. Acaba criando sua filha, Fabiana, que apesar de ter tido uma criação um pouco mais livre, acaba fazendo algo pior do que ter um casamento com um alcoólatra: uma gravidez indesejada. Marlene nunca aceita que sua filha, em pleno século XXI, quer mudar as regras do jogo e fazer sua vida, mesmo tendo uma filha para criar.
Mas tudo muda quando Fabiana morre tragicamente. Dona Marlene não vê outra opção, a não ser se alienar na religião, e, temendo que a neta Amanda cometa os mesmos erros dela e da filha, resolve criá-la de uma maneira tão disciplinada e rígida, que acaba sendo cruel de todas as maneiras possível, perdendo qualquer tipo de noção, mas que para a velha era o que era correto, pois era a maneira que ela foi criada no mundo.
Todo tipo de cosmético que a menina tinha é jogado fora, as roupas ela só pode vestir ali um vestido azul sem nenhum tipo de requinte, e o negócio vai piorando exponencialmente — chega ao ponto de até a velha a tirar da escola, e cortar a energia elétrica da casa, pois isso são "orientações de sua santa mãe". A parte que a velha resolve jogar fora a única boneca dela é de quebrar o coração:
Eu, que já estava oca, desmoronei quando vó apareceu na sala de jantar abanando minha Susi. Me joguei no chão puxando sua saia e implorando para que ela não tirasse aquela boneca de mim, porque era uma das poucas coisas que me restaram de mainha. Aquela boneca foi a única vez em que mainha me deu um presente com direção, dizendo que a Susi deveria ser minha inspiração para me tornar veterinária. Aquela boneca, com a qual eu já não brincava, não me encantava apenas pela aparência que eu gostaria de copiar ou pelas roupinhas que eu queria muito vestir. Ela apontava meu destino. A minha resposta extrema não causou comoção. A Susi tinha que ir embora. Suas roupas eram imorais, a camiseta com o short, brincar com aquilo não era saudável para a mente, não era bom que uma garota de doze anos desejasse ser como aquela boneca e eu não teria tempo para brincadeiras, ela falou mesmo depois que repeti centenas de vezes que não brincava mais, só guardava. Eu não brinco, vó, é só pra lembrar de mainha, vó, por favor, eu juro que eu não brinco, eu já não brincava faz tempo, vó, por favor.
Em meio a isso tudo, Amanda descobre o amor. E é uma das partes mais bonitas desse livro repleto de tristezas. Sua amiga Jéssica — que é muitas vezes o porto seguro da pobre Amanda, onde ela pode desabafar e buscar refúgio das loucuras da avó — vai criando um sentimento amoroso por Amanda que é recíproco por parte dela.
A cena do primeira beijo é aquele tipo de cena que nos faz lembrar do nosso primeiro beijo — aquele amor mais inocente e puro, quando estamos descobrindo sobre o mundo, e as coisas pareciam mais simples.
Jéssica levantou com calma, se equilibrando numa linha de silêncio, sacudiu os carrapichos do short e me puxou para que eu também ficasse de pé, então me abraçou. Dei um passo para trás, achando que era o fim do abraço, mas ela segurou minhas mãos e se aproximou outra vez. — O que foi? Ela não respondeu. Me beijou. (...) Eu não sabia como beijar e nunca tinha imaginado que meu primeiro beijo seria com uma garota. A parte de ser uma garota até podia ser uma surpresa, mas meu primeiro beijo ser com Jéssica fazia todo sentido.
As crueldades contra Amanda vão apenas piorando, até que um dia o Soim, um macaquinho que ela havia feito amizade, acaba entrando no oratório e fazendo a estátua da Fabiana cair no chão, causando danos dela. Quando a velha descobre, ela entra em um estado de fúria incontrolável, e vai pra cima da neta querendo matá-la. Amanda se defende, tentando jogar todo tipo de objeto contra ela — incluindo as currulepes, que são aquelas sandálias bem rústicas, com apenas tiras de couro, dessas que a gente vê o povo da época de Jesus usando nas séries e filmes, o único calçado que era permitido Amanda usar.
Eventualmente Amanda consegue sobreviver às agressões da avó, mas termina por quebrar totalmente a imagem da santa. Sua avó, após cansar de bater na neta, se tranca no quarto. Na manhã seguinte Amanda a encontra morta, com as pernas em cima da cama, e seu tronco estirado no chão. Aparentemente foi acometida por um mal súbito.
A estátua não era abençoada, todas aquelas regras absurdas eram ridículas e, depois de conseguir dizer isso com a boca cheia, enxergava como eram aterradoras. Eu chorava também de vergonha. Que vergonha ter passado por todas aquelas coisas. Que vergonha ter acreditado, e ter obedecido, e ter vagado como alma, ter caído como vítima.
No final a guarda de Amanda é dada para sua tia Margarete, outra que em diversos momentos tentou proteger a menina da avó, sem sucesso. Ela se muda para outra cidade para começar uma nova vida, com esperanças de que agora as coisas darão certo, e ela eventualmente voltará à sua terra natal para se encontrar com Jéssica, seu grande amor.
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