Livros 2024 #23 - Do que eu falo quando falo de corrida (2007)


Eu já comentei aqui o quanto Haruki Murakami é um dos meus autores preferidos vivos, mas nunca cheguei a ler algo mais biográfico dele. Eu nem sabia que ele era um corredor de ruas tão esforçado, e essa obra dele é um relato pessoal de todas as dificuldades, virtudes, e vivências, tanto de um corredor, como paralelos com sua vida de escritor. Uma leitura simples, mas muito gostosa.

Uma vez, entrevistei o corredor olímpico Toshihiko Seko, logo depois que ele se aposentou das pistas e virou técnico de equipe da companhia S&B. Eu perguntei a ele: “Um corredor no seu nível alguma vez sente que não está disposto a correr tal ou tal dia, tipo, hoje não vou correr e vou ficar dormindo mais um pouco?” Ele olhou para mim e então, numa voz que deixava cristalinamente claro como achava a pergunta estúpida, respondeu: “Claro. O tempo todo!”

Intitulada "Do que eu falo quando falo de corrida", inspirada no título de uma coletânea de contos de Raymond Carver, What we talk about when we talk about love, Murakami nos presenteia com um relato pessoal com todo aquele seu estilo básico e bem feito de se contar uma boa história. Sempre muito conciso e organizado, o livro não é cheio de profundidade ou subjetividades — mas não quer dizer que não tenha alguns momentos assim também. O autor sabe como ninguém usar as entrelinhas de uma forma muito elegante, além de escrever muito bem em primeira pessoa.

O livro passa por toda sua experiência no atletismo, incluindo treinos, como tudo começou, as dificuldades, e devaneios que passam pela sua mente durante a realização da atividade. Descobrimos o quanto que ele treina, a preguiça que pode vir, a difícil tarefa de se manter uma rotina de exercícios físicos constante, além das diversas oportunidades que o autor teve de morar fora, do Havaí até Cambridge.

Durante o livro existe também o relato de provas que ele participou: Murakami corre uma maratona todo ano. Todo o preparo para uma prova dessas não é nada fácil, mas ele também conta de outras empreitadas que ele se propôs, como uma ultramaratona (onde ele correu cem quilômetros no lago Saroma, na província de Hokkaido), e até triatlo, onde ele relata o difícil treino numa prova onde os três esportes são o foco da competição.

É precisamente minha capacidade de detectar determinados aspectos de uma cena que outras pessoas não conseguem, de sentir de forma diferente dos outros e de escolher palavras que são diferentes das deles que me permite escrever histórias que sejam minhas e de mais ninguém. E por causa disso temos a extraordinária situação em que não poucas pessoas leem o que escrevi.

Murakami é japonês, então como eu disse acima não espere uma escrita muito emotiva ou subjetiva. Ao mesmo tempo ele, mesmo sendo quem ele é, tem aquele hábito cultural japonês de sempre mostrar humildade e ao mesmo tempo determinação. Você nunca vai ver o Murakami dizendo que ele é um super corredor — mesmo a gente não deixando de admirar que alguém que corra maratonas, não é qualquer pessoa que consegue isso — mas ele sempre vai comentar do esforço dele, aquela coisa contínua, focada, mesmo que tudo isso seja algo tão difícil quanto, sem romantizar esse aspecto.

Gosto muito do jeito que ele conta da sua vida de escritor, traçando pontos em comum com sua vida de atleta, mesmo que ambas pareçam ter nada a ver uma com a outra. Apesar de Murakami colocar sua carreira literária à frente do seu hobby de corredor, ele comenta várias vezes em como um hábito que ele queria desenvolver para ter saúde e qualidade de vida se tornou também um elemento de sua vida que o ajuda a viver mais e melhor — e assim continuar escrevendo por muito tempo. 

Mas aqueles dentre nós que alimentam a esperança de ter uma longa carreira como escritores profissionais precisam desenvolver um sistema autoimune próprio, capaz de resistir à toxina perigosa (em alguns casos letal) que reside dentro de nós. Fazendo isso, podemos dispor eficientemente de toxinas ainda mais fortes. Em outras palavras, podemos criar narrativas ainda mais poderosas para lidar com elas. Mas é preciso um bocado de energia para criar um sistema imune e mantê-lo funcionando por um longo período.

Considerando que ele escreveu esse livro aos 58 anos, o negócio de corridas tem dado muito certo, pois atualmente ele está com 75 anos e, até onde eu sei, ele continua muito bem saúde.

Achei um livro delicioso de se ler. Depois de ler tanta paulada esse ano, é bom ter um lugar para se encontrar um pouco de conforto. Eu gosto de correr, e durante uns cinco anos eu fui um corredor de rua assíduo — mas eu, no meu caso, realmente eu era ruim mesmo, pois meu ritmo era horrível, e dez quilômetros era o meu limite, que eu completava quase morrendo.

O que quero dizer é: não comecei a correr porque alguém me pediu para me tornar um corredor. Assim como não me tornei um romancista porque alguém me pediu para ser um. Certo dia, do nada, quis escrever um romance. E um dia, do nada, comecei a correr — simplesmente porque eu quis. Sempre fiz o que tive vontade de fazer na vida. As pessoas talvez tentem me deter, e me convencer de que estou errado, mas não vou mudar.

Enquanto eu lia o livro do Murakami pensava que minhas dificuldades e vivências na corrida eram praticamente iguais. Mas como eu sou muito tímido, nunca cheguei a conversar e trocar essas figurinhas com outras pessoas que corriam. Eu lembro que tinha minha amiga Vera na época, corredora também que conheci na Fila Night Run, mas eu na época era todo apaixonadinho por ela, então quando estávamos juntos eu raramente falava sobre corrida. Mas ler o Murakami me fez sentir menos sozinho por achar que só eu tinha essas experiências. Ler seu livro foi como encontrar um amigo de corrida e conversar sobre!

Comentários

Postagens mais visitadas