Livros 2024 #24 - A mulher desiludida (1967)


Esse ano eu já estava querendo expandir as leituras sobre feminismo, então fui ler o livro de uma das maiores expoentes nesse assunto. Nesse livro Simone nos presenteia com três contos, todos com personagens diferentes, até estilo de escritas bem diferentes, mas um assunto em comum: o abandono e solidão que mulheres sentem, além do quão injusto e revoltante é o que mulheres acabam encarando nessa sociedade machista e patriarcal conforme envelhecem.

E eis que me pego olhando meu relógio cujos ponteiros parecem não se mexer.

É de conhecimento geral de que a Simone de Beauvoir é uma grande catedrática, especializada na área de filosofia existencialista, mas somente uma pessoa que possua tal nível de conhecimento é capaz de produzir uma obra que fale desses conceitos tão complicados de uma maneira mais acessível ao grande público. E acho que os diversos romances dela são os maiores exemplos disso, e o caso desse livro, "A mulher desiludida" isso se mostra ainda mais verdadeiro.

Simone de Beauvoir escreve muitíssimo bem. Ela tem tudo o que uma grande romancista tem, sabe estruturar uma história, criar personagens reais, e fazer esse tipo de denúncia mostrando as diversas situações difíceis que as mulheres vivem. Mesmo sendo contos, e nenhum tendo uma relação direta com o outro, vemos que o tema é o mesmo: denunciar o quanto o patriarcado é algo a ser combatido na nossa sociedade, mostrando através de suas protagonistas as diversas situações de desamparo que incontáveis mulheres vivem até hoje.

Essa edição da Nova Fronteira ainda possui um excelente prefácio da Andréa Pachá, que serve como uma excelente introdução de quem foi a Simone, do que se trata o livro, e dos assuntos profundos que ele questiona. Vale a pena ler com bastante atenção para se aproveitar o livro por inteiro.

Eu transpunha a porta do liceu do Bourg, quase tão jovem como as próprias alunas, e olhava apiedada os professores de cabelos grisalhos. E opa! Tornei-me a velha professora, e as portas do liceu se fecharam.

O livro é dividido em três contos: a idade da discrição, monólogo, e a mulher desiludida. O último é o que dá o título do livro, traduzido do original em francês La Femme rompue, que numa tradução literal seria algo como "A mulher quebrada", mas achei o título brasileiro mais feliz em sintetizar o que se passa ali no conto.

No primeiro conto, "A idade da discrição", conhecemos a história da mulher protagonista (que se não me engano não é revelado seu nome), casada com André e mãe de Philippe. Ela, uma mulher já madura, com o filho criado e tudo mais, sempre teve uma carreira acadêmica, e havia acabado de publicar em livro com ensaios sobre Rousseau, ao mesmo tempo que está empolgada em começar o próximo livro, sobre Montesquieu.

Não prejulgar o futuro. Fácil de dizer. Eu o via. Ele se estendia diante de mim, a perder de vista, plano e nu. Nenhum projeto, nenhum desejo. Não escreveria mais. Então, o que faria? Que vazio em mim, à minha volta! Inútil. Os gregos chamavam seus velhos de vespões. "Vespão inútil!", diz Hécuba nas Troianas. Era o meu caso. Estava aniquilada. Perguntava-me como se consegue viver quando não se espera mais nada de si.

Um dia ela recebe a visita se seu filho com sua esposa, Irene — que diga-se de passagem, ela é bem ciumenta acerca do relacionamento dela com seu filho — e nas conversas ela descobre que seu filho quer deixar a Academia para ganhar dinheiro no mundo dos negócios. E essa decisão repentina do filho a faz perceber que o tempo passou, e que ela não tem mais poder sobre as decisões dele. E isso a faz se sentir muito mal.

No segundo conto, "Monólogo", Simone muda completamente seu jeito de escrever. Enquanto o primeiro era muito mais estruturado como uma prosa tradicional, nesse é escrito totalmente em primeira pessoa com direito a fluxos de pensamento e muita, muita, muita revolta e ira.

Merda estou morrendo de sede estou com fome mas levantar da poltrona e ir à cozinha isso me mata. Está gelado nesse buraco mas se eu ligar a calefação aí mesmo é que o ar vai ficar completamente seco e não tenho mais saliva na boca meu nariz está queimando. Que droga essa civilização.

Apesar de ser a história mais curta, é de longe a mais intensa. Sofrendo pelo suicídio de sua filha Sylvie, abandonada pelo marido e a família, ela está cansada de tudo e todos. Tecendo críticas ao mesmo tempo que tenta falar de sua dor, a gente lê tudo o que estava ali, entalado em sua garganta, criticando todo o peso que a sociedade lhe sufoca, além dos pensamentos mágicos acerca do que poderia ter feito de diferente para salvar a filha. Um desabafo pesado e revoltante.

Tem uma parte que ela está tão cansada de tudo que escreve "estou farta" repetindo a última palavra 74 vezes. É realmente um texto muito forte, e bem difícil de se encontrar nela pois tudo é mudado muito rápido, e num parágrafo parece seguir uma linha de pensamento, depois tudo é vai pra outro assunto do nada, e assim vai indo.

Isabelle tem razão: é normal que um homem tenha uma aventura após 22 anos de casado. Se não o admitisse, eu é que seria anormal — infantil, em suma.

E por fim, o conto que dá nome ao livro, "A mulher desiludida" é escrito de uma terceira maneira: no formato de um diário. Cada dia ali é registrado o que acontece, e nesse registro conhecemos Monique (a talvez única protagonista que recebe um nome nesse livro), casada com Maurice, descobre que seu marido está tendo um caso extraconjugal com Noëllie, uma mulher mais jovem, bonita, e isso a atinge como uma tempestade depois de uma calmaria.

Acontece que Monique é aquela esposa tradicional, dona de casa, que inclusive deixou de lado suas aspirações profissionais para ser uma mãe e esposa vinte e quatro horas por dia. Seu marido Maurice é um médico, e quando ela descobre a traição é um momento muito louco, pois a única entrada que ela dá no diário é "Aconteceu. Aconteceu logo a mim", única anotação que ela fez no dia 26 de setembro deixando as explicações apenas para o próximo dia.

No café da manhã, Maurice disse que, de agora em diante, quando saísse à noite com Noëllie, pernoitaria na casa dela. Afirma ser mais decente para ela e para mim. — Já que você aceita essa história, deixe-me vivê-la corretamente. 

A partir de então a Monique entra em uma espiral descendente, onde ela vai se afundando cada vez mais e mais. Ela não apenas questiona, rememora, ou tenta reconquistar Maurice, mas também não consegue aceitar que aquilo aconteceu com ela, que imaginava que o amor seria algo pra frente, e não consegue se imaginar sem o seu marido.

Esse último conto acho que é onde os personagens são melhores desenvolvidos. É o maior dos três também, cobrindo mais da metade de todas as páginas da publicação.

Criticando o patriarcado, em como as mulheres acabam sendo ensinadas a serem apenas dependentes do marido, esse último conto escancara o quanto isso é autodestrutivo. Mas como a própria Simone afirmou, acabamos simpatizando demais com os personagens, mas esquecemos a denúncia que está sendo feita em todos os contos. Material para refletir para nos esforçarmos em mudanças para tornar o mundo mais justo para as mulheres que vivem nessa estrutura patriarcal, antiquada e machista da nossa sociedade.

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!

Conforme o primeiro conto (A idade da discrição) vai se desenvolvendo, além dos embates com André, a protagonista vai sofrendo conforme percebe que a idade está se avançando. E como se isso não bastasse, a idade vai chegando, e com as mulheres é ainda mais cruel. 

Enquanto o marido continua a aproveitar todas as benesses, sendo admirado por sua maturidade e se sentindo alguém útil dentro da sociedade, a protagonista sofre com uma crítica negativa ao seu livro, e não se vê mais encaixada em lugar algum. Ela começa a se ver como uma inútil, pois tudo o que ela havia construído começa a meio que se ruir, e por conta da idade avançada acha que a partir dali não vai ter nada — a não ser esperar pela morte.

Lembro-me de meu primeiro posto, de minha primeira turma, das folhas mortas que rangiam sob meus passos no outono provinciano. Então, o dia da aposentadoria — distante de mim um lapso de tempo duas vezes mais longo, ou quase, que minha vida anterior — me parecia tão irreal quanto a própria morte. E eis que há um ano ele chegou.

Aquela mulher que até ontem era uma estudante, agora se via como uma velha professora. Apesar de todo o sofrimento, ela acaba encontrando algum tipo de conforto na sogra, Manette, onde ambas protagonizam diversas cenas interessantes ao longo do conto. No final da história ela se reencontra com seu filho Philippe, que depois de uma briga bem feia, ambos fazem as pazes: ela aceita as escolhas do filho, que no final decide que não vai abandonar complemente os estudos, conciliando o trabalho junto à vida acadêmica.

No segundo conto (Monólogo) além da dor da filha, é interessante ver a relação da protagonista com Tristan, seu novo namorado. Ele é um personagem complexo, que muitas vezes defende Sylvie, sendo igualmente uma grande fonte de dores de cabeça para a protagonista. Isso sem contar Albert, o pai de Sylvie, que ela também não perdoa nada, criticando até a nova esposa dele.

É fácil demais com essas drogas que são conseguidas de qualquer jeito; essas garotas por qualquer motivo brincam de suicídio; Sylvie seguiu a moda: não acordou mais. Eles chegaram beijaram Sylvie ninguém me beijou e minha mãe gritou: "Você a matou!" Minha mãe minha própria mãe.

Pelo que entendi Sylvie acabou morrendo com uma overdose de remédios. Ela havia deixado uma mensagem que não esperava que aquela dose seria fatal, mas acabou se mostrando isso. Quase como se ela estivesse "brincando de suicídio", mas a brincadeira não terminou bem. Esse é um texto bem difícil, não apenas pelo tema que é abordado, mas pelos desencontros da narrativa. Uma mulher tomada por uma raiva tão intensa que é difícil até de articular uma ordem dos fatos. 

No terceiro conto (A mulher desiludida) é muito arrastado, mas tem uma razão: o fato de que Monique não consegue aceitar ter sido abandonada. Ela passa por todas as fases — que achei muito similar às fases do luto — começa negando aquilo tudo, depois sente uma raiva e um desgosto de Noëllie, tenta de todas as formas reconquistar Maurice (que também não ajuda, e fica tentando manter os dois relacionamentos ao mesmo tempo), até que ela entra numa profunda depressão, deixando de se cuidar, até de tomar banho e o livro termina com um ensaio de superação, aceitando, mas ainda assim é muito incipiente.

A pavorosa descida ao fundo da tristeza! Pelo fato de estarmos tristes, não temos nenhuma vontade de fazer algo alegre. Ao acordar, não ouço mais discos. Nunca mais ouvi música, não vou ao cinema, não compro para mim alguma coisa agradável. Levantei-me quando ouvi chegar mme. Dormoy. Bebi meu chá, engoli uma torrada, só para agradá-la. E encaro esse dia que ainda tenho de viver.

Monique tenta até ter um amante, que Maurice, com essa pompa machista de achar que é dono da mulher, ainda tem a cara de pau de criticar por ela sair com Quillan — o amante.  Em diversos trechos ela comenta revoltada em como essa relação extraconjugal com uma moça mais jovem parece até rejuvenescer Maurice, que tem com Noëllie uma relação íntima que nunca teve com Monique.

Ela chega a extremos, onde seu corpo começa a sangrar, e ela vai perdendo peso e definhando. A própria Noëllie diz que não vai deixar Maurice de jeito nenhum, que ela prefere tirar a própria vida a deixar seu novo marido, e isso força Maurice a pedir para que Monique os deixe em paz. A pobre Monique fica tentando nutrir uma esperança de que tudo aquilo passará e voltará a ser o que era antes, mas Maurice & Noëllie são implacáveis, e o sofrimento de Monique é simplesmente ignorado.

Olho as gotas deslizarem sobre a vidraça que a chuva fustigava ainda há pouco. Elas não caem verticalmente. Como animaizinhos que, por razões misteriosas, obliquavam à direita, à esquerda, esgueiravam-se entre as outras gotas imóveis, detinham-se, tornavam a partir como se buscassem alguma coisa. Parece-me não haver mais nada a fazer. Agora, tricotar, cozinhar, ler, ouvir disco, tudo me parece vão. O amor de Maurice dava importância a cada minuto de minha vida. Ela está vazia. Tudo está vazio: os objetos, os instantes e eu.

O final aliás é bem curioso. Maurice não arreda o pé, e decide ficar com Noëllie acima de tudo. Ao menos ele decide não ficar exibindo a amante por aí, já que o negócio fica sério. Monique faz uma viagem aos Estados Unidos, onde lá encontra suas filhas, e percebe como os relacionamentos da geração delas são mais fluidos — afinal elas possuem suas carreiras, e não criaram esse vínculo de dependência como a mãe — e ela fica fica meio escandalizada pensando que elas "não sabem o que é amor".

Ela termina olhando para a porta que era o escritório do Maurice e seu quarto, meio que aceita que as coisas mudaram, e que não continuarão mais juntos, e pensa que na sua frente o que tem é o futuro incerto:

Sentei-me diante da mesa. Estou sentada. E olho essas duas portas: o escritório de Maurice, nosso quarto. Fechadas. Uma porta fechada, qualquer coisa que espreita atrás. Ela não se abrirá se eu não me mexer. Não me mexer. Jamais. Parar o tempo e a vida. Mas eu sei que me mexerei. A porta se abrirá lentamente, e eu verei o que há atrás da porta. É o futuro. A porta do futuro vai se abrir. Lentamente. Implacavelmente. Estou no limiar. Só existem esta porta e o que espreita atrás dela. Tenho medo. E não posso pedir socorro a ninguém. Tenho medo.

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