Livros 2024 #25 - Obsceno abandono (2002)


A dor de ser abandonada tem coisas em comum, mas podem ser expressas de maneiras distintas. Marilene Felinto escreveu um livro com uma personagem repleta de revolta pela injustiça de ter seus sentimentos tratados de forma leviana. Uma mulher que se humilha, tentando fazer o seu parceiro sentir-se culpado — e falhando miseravelmente nisso — mas há uma coisa que me chamou ainda mais atenção: todo o ar sexual que o livro tem.

Arrependimento é a pior de todas as palavras –tem erres que se arrastam no tempo, fazem ruído, rangem como dentes na casa silenciosa de meus ouvidos de noite. É uma espécie de maldição.

O livro conta a história de uma protagonista sem nome que resolve falar de seu antigo relacionamento com Charles, um homem que a tem como uma amante. O problema é que a protagonista cria um vínculo tão grande, está tão tomada pela carência, que acredita que pode conquistá-lo — mesmo ele deixando bem claro desde o começo do livro que não vai se separar da esposa.

Acontece que a protagonista é uma mulher que nunca teve sorte no amor. E reclama de como ela não conseguiu criar vínculos amorosos com ninguém — seja pela aparência mediana, pelas desilusões amorosas, ou simplesmente por ela tentar dar passos maiores rumo a um compromisso e não ser recíproco do outro lado. Pensando bem, esse último parece um pouco comigo.

Toda a minha vida foi desperdiçada em criar vínculos que não existiam, que nunca existiram nem poderiam existir no tempo e no espaço – são vínculos de elástico, o destino esticando de um lado uma ponta, e eu esticando do outro a outra ponta, feito crianças que brincam. Em algum momento o destino soltava a sua ponta, e então o vínculo ricocheteava e vinha bater na minha cara, deixando o vergão vermelho, a marca, o ardor. Ou era eu, então, que resolvia dar na cara do destino como quem joga ao contrário um estilingue.

Ela, essa pessoa extremamente emotiva, fica sofrendo querendo ser uma pessoa mais racional. Ser alguém que saiba ter controle sobre isso que tanto a escraviza. E então ela vive uma vida de altos e baixos bem acentuados: extremos de felicidade seguidos por uma tristeza avassaladora logo depois. E tomada por essa tristeza ela incontáveis vezes se queixa não apenas na forma da narração, como pro próprio Charles, dizendo que abandonar alguém devia ser um crime.

O livro é dividido em duas partes: abandono & obsceno. Na primeira parte, como eu disse, tem muito desses depoimentos acerta de ter sido abandonada, de isso ser uma injustiça, de que não faz com alguém que é tão vulnerável e carente como ela.

O segredo é não se emocionar – não se emocionar nunca, não revelar aos outros o que você está sentindo. É estar preparado para o pior na vida, sempre para o pior.

A segunda parte, "obsceno", embora exista sim algo de sexual em que essa parte é baseada, acredito que o que ficou mais na minha cabeça de leitor é que a protagonista tenta de todas as maneiras possíveis conquistar Charles de volta. A verdadeira obscenidade aqui é o quão baixo a protagonista vai se rebaixando por culpa de um homem. Ela envia cartas, e-mail, telefonemas, e por mais que ela tente convencê-lo, expor toda a situação, e de alguma forma vender a ideia de que ela é a certa dessa relação, Charles é intransigente.

Não vou negar que acho muito errado ele continuar dando trela para ela, como se quisesse mantê-la para uma eventual foda, não dando a mínima para os sentimentos da mulher.

 – Uma pessoa não pode enfiar a língua profundamente no sexo da outra um dia (inaugurando gostos, despertando sensações, provocando arrepios de pura vida) e desaparecer depois! Uma pessoa não pode hospedar assim toda a sua língua no sensível aconchego do sexo da outra e depois deixar ali aquele vazio de lembranças úmidas e quentes.

As duas partes possuem ali uma estrutura bem similar, eu achei isso muito curioso. Mais ou menos a mesma linha de assuntos são tratados em um e no outro, como o começo na estação Madeleine do metrô parisiense, passando pelas roupas íntimas deixadas na casa dela, o desejo de se mudar as leis para colocar abandono amoroso como crime, e por aí vai. Mas como as duas partes tratam de pontos de vista diferentes, essa repetição de temas têm pesos e importâncias diferentes em cada parte.

A protagonista relembra várias vezes sobre as transas que ela já realizou. E o sexo é um ponto central no livro, pois é através dele que ela expressa e sente seu amor. Por ela ser uma pessoa muito carente, uma transa não é apenas uma transa, e ela transcreve as relações de Charles com uma memória fotográfica, muito focada em todas as emoções que aconteciam nas vezes em que eles faziam sexo.

Eu morro de medo de que você não me compreenda, de que você me prenda e me abandone. Mas o pior medo é o de que você não me responda, não me corresponda. Você que não escreve nada, nunca. Hoje é o primeiro dia de frio de quase inverno, e é como se eu... Metade da minha vontade em relação a você é de medo. A outra metade é de puro amor.

Sexo é tão importante para ela que até mesmo as brincadeiras de médico da infância são relatadas, onde ela descobre o que é o prazer, a curiosidade de descobrir seu corpo, e todas as outras coisas.

Por um momento olhava com estranheza isso. Não sei se a achava uma depravada, mas aí parei pra refletir se eu estava tendo uma visão machista acerca da sexualidade da protagonista. E concluí que sim. Num mundo onde sexo é algo tão censurado, o que a gente mais vê são pessoas falando de amor e relacionamentos como aquela coisa casta, idealizada, sem dar muito foco à questão sexual.

No entanto sabemos que sexo é essencial num relacionamento. É algo que caminha junto do próprio amor, e o que Marilene Felinto faz é o que quase ninguém tem coragem de fazer: mostrar esse lado.

Hoje vou dormir sem calcinha. Estou toda sexual, puramente sexual. Outro dia fui a um cinema desses do centro da cidade – desses pornográficos, ver gente fodendo gente na tela grande. Só me interessava ver isso: gente fodendo gente. Homens arregaçando mulheres que arreganhavam outras mulheres que procuravam outros homens que se penetravam uns aos outros. Só me interessava o sexo virtual das telas, os bate-papos entre desconhecidos que nem ao menos se veem, que se comunicam pela imaginação, pelas falhas, pelos espaços vazios, pelas lacunas, pelas fantasias da imaginação. Eu estava disposta a arranjar um amante que me quisesse.

No processo de desconstrução do meu preconceito — por eu achar que a protagonista seja lasciva — parei pra pensar que eu não devia olhar com estranheza para isso, e sim com naturalidade. Pois homens e mulheres desejam sexo de maneira igual, então por que é aceitável um homem falar e é estranho uma mulher tratar do mesmo assunto? Esse meu pensamento está completamente errado!

Não é porque a "forma de expressão de amor dela é baseado no sexo", e sim que toda expressão de amor, de todas as pessoas do mundo, tem como base o sexo. É assim para todo mundo. É através da relação que criamos laços sociais, isso vai muito além de apenas reprodução. O que a protagonista vive é o que todo mundo sente, mas ninguém expõe — pois apesar de tudo sexo continua um tabu, e para as mulheres ainda é pior, pois é a ferramenta para oprimi-las perante a sociedade. E isso é algo que temos que nos esforçar para mudar, pois é algo inerente e natural ao ser humano.

Talvez pessoas mais bem resolvidas emocionalmente criticariam, dizendo que ela é muito apegada, ou muito emotiva. Mas eu entendo completamente a protagonista. Ela apenas quer ser amada, ela apenas quer alguém que a preencha. E não há problema nenhum em ser assim, tem pessoas que são mais bem resolvidas sozinhas, e outras pessoas que gostam de sempre estar com uma companhia, e nenhuma é melhor que a outra.

Eu queria ser mais monstruosa – dessas mulheres grandes e monstruosas. Eu queria não depender de ninguém. Mas não – sou toda mediana, toda feia e mediana. Meus amores não têm base de sustentação, são como prédios de alicerces mal feitos – com o tempo, acabam ruindo por inteiro.

A partir do momento que a ausência de algo a incomoda é que algo tem que ser feito — e jamais julgar. Essas pessoas que dizem que "deve se amar sua própria companhia" é sempre o tipo de pessoa que nunca ficou solteira na vida. Pois a solidão é triste, tem dias que a gente só quer um abraço, um beijo gostoso, ou uma noite de amor. E desejar isso não é errado, pois nossa espécie tem como base a sociabilidade. Pessoas podem até escolher terem filhos ou não, mas todo mundo, sem quase nenhuma exceção, busca um parceiro na vida. E quando não buscamos ficamos doentes, a vida deixa de ter sentido, e tudo parece mais difícil.

Acho que esse livro me ajudou muito a refletir sobre mim mesmo. O que eu sempre mais ouvia na vida era que eu era uma pessoa muito "apegada amorosamente" às mulheres que já tive algum interesse. E por ser tão criticado nisso, é óbvio que é a coisa que eu mais queria mudar. Eu queria ser o cara frio na hora da paquera, mas nunca consegui. Mas assim como a protagonista do livro, isso é algo tão intrínseco na gente que é impossível mudar. É algo que está na nossa raiz, e isso não se troca assim — isso é, se for possível mudar, o que duvido.

Então porque ao invés de olhar com crítica à revolta dessa protagonista, porque não entendemos que o que ela quer é apenas algo central na vida de toda a humanidade, o amor? Seja da forma que ela quiser se expressar e viver esse sentimento.

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