Livros 2024 #26 - Copo vazio (2021)
Esbarrar com o livro da Natalia Timerman foi um ótimo achado. Em "Copo vazio" ela escreve uma história de amor contemporânea — em tempos de redes sociais e aplicativos de namoro — mas sem deixar de abordar o que acontece há séculos: o abandono que as mulheres sentem quando o homem simplesmente some.
O livro conta história de Mirela, uma mulher ali de uma classe média da cidade de São Paulo, com um padrão de vida bem confortável, que um belo dia, por sugestão da sua irmã Marieta, resolve instalar um aplicativo de namoro para conhecer um novo rapaz. Então sua vida cruza com Pedro, um doutorando mineiro que veio à SP para terminar seus estudos, e ambos iniciam ali uma relação muito intensa, de apenas três meses.
Mas quando ela disse eu te amo, uma noite dessas, antes de dormirem, ele ficou quieto. Ela havia falado baixo, sussurrado, talvez ele não tivesse escutado. Ou talvez fosse só questão de tempo. Devia ser. Ele já estava se soltando. Cada dia um pouco mais. Quarta passada, de manhã, ele a abraçou forte, forte, e disse que não a deixava sair, que estava presa. Por lei, ele brincou. Mirela se sentiu bem. Foi quase um eu te amo, estar entre os braços de Pedro, na cama, daquele jeito sem poder sair.
Mas como tudo o que é muito intenso, acaba sendo fugaz também. Pedro é um cara super desligado, desses que demora muito a responder mensagens, e que frequentemente deixa Mirela a ver navios quando ela mais precisa dele. E ainda volta depois com a cara de pau como se nada tivesse acontecido.
Mirela começa a se sentir cada vez mais desamparada, e uma tristeza, quase como uma fobia, vai se instaurando nela. Isso tudo alimentado ainda mais pelas redes sociais, onde podemos dar uma de detetive particular e espionar a vida da pessoa (ou pelo menos o que essa pessoa divulga sobre ela na internet). A protagonista começa a se tornar paranoica, movida pela carência e a vontade de viver aquele negócio intenso mais uma vez, e na esperança de que aquilo seja para sempre.
A gente passa a vida toda escutando que precisa ter alguém, a gente mulher, né?, e nem só escutando, a gente passa a vida toda assistindo filme de conto de fadas, novela, viveram felizes para sempre, essas coisas, a gente passa a vida toda ouvindo de mãe, de tia, de vó, de pai, a vida toda desde criança já sabendo que uma mulher precisa ter alguém, precisa ser em dupla, ter um par, senão é como se fosse menos, ou até se não fosse nada, a gente nem tem a chance de se perguntar, será que eu quero estar com alguém?
A autora criou uma estrutura excelente no livro, com várias linhas do tempo correndo paralelamente, mostrando desde o passado, quando Mirela e Pedro se conheceram, o presente, onde mostra o abandono, e o futuro, que é para onde o livro vai se encaminhando para o desfecho. Até os nomes dos capítulos me fizeram quase ver uma poesia ali no sumário, com todos aqueles "antes", "depois", "hoje", "Pedro,", "Foi assim", "Tempo", etc.
Mudando a pessoa que narra os capítulos, transitando entre aquela primeira pessoa eufórica, temendo sempre pelo pior, passando por um narrador descritivo em terceira pessoa, é como se o livro fosse passando pelos capítulos sempre com uma intensidade fluida, indo de coisas muito intensas, para coisas com mais distanciamento, onde refletimos por pontos de vista diferentes.
A peça era ruim, mas eles não ligaram. Pelo menos não Mirela, estava com Pedro, ao lado dele, bem perto, era o que bastava, e qualquer enredo que não fosse o da própria vida seria menos interessante, não queria nem por um minuto sair de si.
Isso sem contar alguns capítulos que são no formato de Whatsapp, um outro que é uma carta que ela escreve para o Pedro com uma profundidade de sentimentos que faz tempo que não lia algo que me emocionasse tanto, e o meu favorito: um capítulo inteiro escrito no futuro do pretérito, onde Mirela faz um trabalho ali de pensamento mágico, imaginando como tudo teria sido, e de alguma forma vivendo aquilo tudo na sua cabeça e permitindo a gente também imaginar aquilo com ela.
Não é um livro difícil de ler, mas não deixa de ter uma prosa que toca no nosso âmago. A gente sente toda a dor que Mirela sente, em todas as suas camadas de complexidade, seja afetiva, fraternal, até sexual. E como o livro não segue um padrão, ele nunca se torna arrastado. Os capítulos são sempre um diferente do outro, revelando e preenchendo lacunas na história, uns mais longos, outros bem curtos, mostrando que descrever uma vida é necessário fazer uso de todo tipo de linguagem abrindo mão de qualquer estilo padrão da escrita comum para expressá-lo.
Tenta resgatar a imagem do rosto de Pedro na memória. Os traços não se fixam, escapam feito fumaça. Recorre à foto que acabou de ver no computador, faz certo esforço para retê-la na mente, consegue, consegue. Mas é a memória da foto, estática, indireta, não do rosto de Pedro. Suas lembranças com ele já não existem mais, substituídas pelos fragmentos insuficientes obtidos através de sua busca frenética, a memória sendo então daquela procura insana por Pedro, ou seja, dela mesma. A única coisa que sobrou dos dois: a ausência dele, aquele nada que Mirela se acostumou a buscar como se fosse um resquício de Pedro, mesmo sabendo em algum lugar que não é. E a própria busca.
Mas acima de tudo o livro faz a gente refletir no quão responsável que temos que ser com alguém que tocamos o coração, quem fazemos nutrir algum sentimento pela gente. Ser abandonado não é fácil, e você ficar tentando achar formas de tentar reviver todo aquele sentimento que viveu com a pessoa — ao mesmo tempo que você deseja esquecer daquilo tudo e deixar de sentir aquela dor — é de um realismo incrível.
Pelo menos uma vez na vida a gente vive isso com alguém. E fica como fica a Mirela mesmo, tentando procurar a pessoa pois é dominado por uma saudade sem fim, ou de ficar se sentindo horrível quando essa pessoa não está por perto e tudo o que você queria era estar com ela novamente, imaginando onde a pessoa está, como são as pessoas com quem ela convive, como é a visão de mundo dela, e tudo mais. A gente deixa nossa realidade para se projetar na da outra, pois tudo o que a gente mais quer é estar ao lado dela.
E quando ela simplesmente não sente isso, ou tudo acaba, a gente fica ainda pior.
Mirela se olhou no espelho. Diziam tanto que era bonita. Ela às vezes concordava, mas não acreditava na consistência da própria beleza. Precisava da eterna confirmação do olhar alheio, das palavras, do outro que sempre anuncia, a cada vez como uma novidade, mesmo a beleza mais antiga.
Viver isso tudo é de uma dor interminável. Eu tinha muita dificuldade de falar sobre minhas vivências acerca disso com minha psicóloga pois ela nunca chegou a sentir tal sentimento arrebatador. Muitas vezes me colocava no lugar da Mirela, tentando entender as diversas vezes que isso aconteceu comigo, e tentar refletir o que faz a pessoa chegar a esse nível.
Pois não é com todo mundo que a gente consegue viver algo assim.
Um livro excelente, eu devorei em três ou quatro dias, me prendeu muito e recomendo!
SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!
No começo do livro achei que o livro se tratava de abandono, mas de um abandono com medo da pessoa. Como se a Mirela tivesse vivido uma experiência traumatizante com o Pedro, mas o livro mostra que não é esse o caso.
Apesar de toda a dor, Mirela vai tentando seguir a vida. Tentar achar alguém que preencha o espaço que Pedro deixou não é fácil. Acho que é toda a questão da intensidade em que tudo foi vivido, junto com o abandono dele, que deixou aquele ar de "tudo o que poderíamos ter vivido ainda mais", mas por conta do jeito do Pedro, sempre tão avoado, acho que de facto a coisa nunca iria dar certo, por mais que Mirela o visse como o homem de sua vida.
Talvez por um exercício de leveza, justo com você, com quem a conversa e o silêncio a partir da sua ausência sempre foram tão pesados. Ou talvez por um querer que você saiba de mim, só por eu querer saber de você.
No caso da Mirela — que acho que de alguma forma consigo aplicar para mim também — é o misto de duas coisas: viver uma coisa pontual, mas de extrema intensidade, ao mesmo tempo que a gente tem o desejo de ter isso sempre, e quando a pessoa amada nos ignora ou deixa a gente fica querendo correr atrás a todo custo.
Se Pedro decidisse ficar na vida de Mirela, acho que o sentimento inevitavelmente arrefeceria, e entraria em todas as outras fases de um relacionamento comum: o amor amadureceria, a paixão e o fogo eventualmente dariam lugar a algo mais estável e tranquilo, e as coisas se encaminhariam como qualquer outro relacionamento sem esse deslumbre inicial.
Mas a questão é que depois de toda a intensidade, ele some, e isso é um negócio de doido. E talvez a única proteção seja o que vem com a maturidade: onde eventualmente vamos nos tornando mais frios, com menos expectativas, e deixando nossa peculiaridade de lado. Talvez para um bom relacionamento não seja imprescindível essa paixão avassaladora, mas sim algo mais frio, indo bem aos poucos construindo um sentimento, e acho que agora estou finalmente conseguindo lidar melhor com isso. Será mesmo?
Ah, Rui. Eu poderia dizer que é só um cara. Um cara que já saiu da minha vida há mais de um ano. Ou talvez nunca tenha chegado a entrar. Mas não pode ser, Rui, sei lá, virou outra coisa, sabe? Não sei, Mirela, mas tudo bem. Vem cá. Se quiser me contar, escuto. Se não quiser, tudo bem.
Achei muito bonito o jeito que Rui vai entrando na vida dela, e entendendo que sim, existe ali uma competição, de um sujeito oculto como foi o Pedro, e que ele deve conquistar o espaço dele no coração da Mirela com muita paciência e carinho. Ele vai se mostrando um verdadeiro homem que Mirela precisava — carinhoso, presente, responsável e maduro.
E logo o espaço que era ocupado por Pedro, que sempre dificultava Mirela de conhecer um novo amor vai sendo gradualmente ocupado por Rui: que não apenas consegue se casar com Mirela, como tem uma filha, a Camila, que como Mirela mesmo disse é a cara da mãe.
É um final tão bonito, especialmente depois que a gente vive toda a dor do livro. Um final feliz para Mirela, que sofreu tanto, e enfim agora pode viver todo o amor que ela sempre mereceu!
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