Livros 2024 #27 - As meninas (1973)


É o segundo da Lygia que eu leio esse ano, e mais uma vez um livro dela toca o meu coração como raras vezes aconteceu. Os censores da ditadura deviam ser incrivelmente burros pra deixar um livro desses passar, pois foi lançado no auge da ditadura militar, e possui uma personagem que luta pela democracia, uma outra com problemas com drogas, e uma sonhadora — afinal os censores devem ter só folheado o livro e lido apenas trechos dessa personagem pra ter passado, só se for!

Eu tive muita dificuldade no começo desse livro. Eu não costumo ler sinopses, mas se possui um prefácio, aprendi que se deve ler. Até queria mandar uma reclamação para a dona Lilia Schwarcz para trazer um prefácio nessa edição — iria ajudar muito a se desfrutar do livro. Meu professor de semiótica dizia que toda peça devia ser auto explicável, por que um livro tão aclamado seria diferente? Mas acho que se eu tivesse ali um plano de fundo sobre as personagens antes, com certeza eu teria ficado menos perdido. Pode ser apenas burrice da minha parte também? Com certeza.

"As meninas", da Lygia Fagundes Telles, conta a história de um grupo de amigas: Lorena, Ana Clara e Lia. Elas vivem em um pensionato de freiras —mas não são freiras, são universitárias — e possuem ali um certo conforto da classe média pra cima. Vivendo ali quase como numa república num lar de apenas garotas, cada capítulo explora a história de cada uma, que vai se entrelaçando. Há alguns capítulos que claramente a gente vê a troca de narradora, mas depois de um tempo fica fácil de perceber a diferença pelo estilo da escrita (que reflete a personalidade de cada uma).

Lorena, por exemplo, é uma menina descendente de ricos agropecuários do interior, ela é uma menina muito idealizadora, apaixonada por um homem casado (o tal M.N.) que ela vive dizendo que ele vai deixar tudo e ficar com ela. Nos capítulos que ela protagoniza, são todos compostos por um fluxo de pensamento bem descritivo, onde cada ação ali é fruto de algo do interior dela, que ela atribui a uma reflexão, ou alguma subjetividade. É muito Virginia Woolf!

Lia já são capítulos mais diretos, cheios de falas, com poucos parágrafos de narração, e acontecimentos bem brutais. Lião (como é apelidada) é membro da resistência contra à ditadura, e tem um namorado, o Miguel, que foi preso pela ditadura e será deportado para a Argélia. Ela é testemunha de torturas, prisões, e todo tipo de atrocidade cometida pelos militares, e organiza atos da resistência.

Ana Clara é tipo a Lorena, mas elevado à enésima potência. Ela é uma modelo, é a mais bonita das três, tem um namorado chamado Max que vive lhe dando "aspirinas" — um codinome para drogas — que faz ela se tornar uma dependente química. As viagens dela são refletidas no tom de sua narração, onde ela fantasia sem limite algum, em blocos de um parágrafo só e durando por várias páginas, perdendo noção do que é realidade e o que é sonho, muitas vezes interrompido pelo próprio namorado, que a chama de coelha.

Todas me chamaram a atenção de uma maneira diferente. Ana Clara, por exemplo, serviu como (mais um) rico testemunho da combinação mulher + drogas. Já tinha lido um outro nessa pegada (A trilogia de Copenhague), e vou confessar que como eu nunca usei nada, é interessantíssimo ver como a dependência química afeta também as mulheres — e pra variar, é ainda mais cruel com elas do que se fosse com homens. Uso de drogas é um daqueles assuntos que "muita gente usa, mas ninguém admite" por conta de todo tabu em torno. Mas os efeitos, quando a pessoa se torna dependente, é tão triste quanto se é do sexo masculino. A diferença é que a mulher é ainda mais vulnerável, especialmente se existem potenciais estupradores à espreita (também conhecidos como "homens"). Sempre era angustiante a narração da Ana Clara, mas quando tinha um homem na parada, o negócio se tornava desesperador.

A Lia me fazia perguntar em como os censores da ditadura deixaram passar. Ainda bem, pois um livro desse seria um desperdício sem tamanho se nunca tivesse sido lançado. Suas narrações são repletas de denúncias, injustiças, numa personagem que apesar de todo o sofrimento é a mais madura ali. Lia é uma mulher feita, segura de si, determinada, mas que apesar de estar inserida num contexto de repressão, ainda encontra espaço para expor as ironias e o sarcasmo da vida, sendo em muitas partes divertida.

Embora seja um saco toda essa paixão que Lorena sente por Marcus Nemesius (o M.N.), à espera da ligação desse homem que parece um sujeito oculto numa oração, o que mais me chamou atenção nela é como ela foi uma menina criada na maneira tradicional em um mundo em transformação. O livro se passa na década de setenta, no auge da Revolução Sexual e da Segunda Onda do Feminismo, a popularização da pílula anticoncepcional, e pelo menos uma década antes do HIV. Mas Lorena escolhe ficar virgem, mesmo muitas vezes sofrendo ao negar o desejo inerente que arde dentro dela. Lia e Ana Clara são bem mais resolvidas na questão sexual, já Lorena em diversos trechos morre de vontade de experimentar sexo mas o jeito tradicional e protetor que ela foi criada é o seu maior freio.

As dificuldades que eu senti no livro foram superadas, e consegui aproveitar melhor, depois que eu fiz umas pesquisas na internet mesmo pra entender esse plano de fundo que escrevi acima. As personagens também muitas vezes se tratam por apelidos, como a Lia ser chamada de Lião, o que me dava muita confusão, pois eu achava que essa última era uma quarta protagonista. Isso sem contar quando Lia usa codinomes, como Rosa, ou mesmo a Ana Clara que é chamada de Ana Turva pelas amigas.

Existem guias que dão resumos dos capítulos na internet, mas uma vez que eu entendi qual era a do livro, me divertia tentando achar qual era a protagonista daquela narração. E a Lygia não menospreza a inteligência de nós, leitores: sempre há algo ali que faz a gente entender quem é que está falando (uma fala, algo na narração, ou alguma descrição). No final eu estava até conseguindo achar as mudanças de narradora no meio dos capítulos — pois sim, não é todo capítulo que é cem porcento narrado por uma das meninas, existem trocas que acontecem até mesmo entre parágrafos!

Na minha cabeça eu as atribuía personagens de Sex and the City: Lorena é a Charlotte, que é toda idealizadora e tradicional, Lia é uma mistura da praticidade da Miranda, com o sarcasmo da Samantha, e a frieza de ambas. Já a Ana Clara é a insuportável Carrie, sonhadora, fumante, e que tem um dedo podre pra homens (Max = Big).  

Livros que são narrados usando fluxo de pensamento nos fazem entrar tanto na mente das protagonistas que é impossível não nutrirmos intimidade por elas. Ainda mais se tratando da Lygia, que por meio da sua narração nos aproxima delas, e nos ensina a admirá-las por toda sua humanidade, sejam nos trechos altivos, ou nos controversos. 

Apesar de em algumas partes darem mais foco a uma personagem, deixando outras mais à margem, todas ali são bem desenvolvidas. Vemos nossas meninas amadurecendo, mesmo à custa de muita dor, mas nos trazendo uma inspiração incomensurável. E mesmo que o livro traga tantos contrastes de uma para a outra, conforme o final vai chegando a história vai dando um jeito que unir as três novamente.

Final aliás, que me fez chorar como fazia tempo que não fazia!

Lygia é uma das rainhas da nossa literatura e não é à toa! E segue inspirando e emocionando gerações com tudo o que escreveu. Obrigado por tudo!

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!

O desfecho de cada uma é bem marcante. A começar por Lorena, que encontra o colega Guga, e depois de cuidar dele, pinta um clima ali entre eles, mas ela, ainda tomada por essa fidelidade platônica pelo Marcus Nemesius (tem que falar o nome do canalha, aqui não vai ser M.N. não!!) não cede aos encantos do cara, mesmo sentindo vontade. Essa parte eu achei bem frustrante, pois Lorena é uma menina bem legal, merece ser feliz, fiquei bem revoltado por não ter rolado nada.

Lia, já com as passagens para seu exílio na Argélia, decide ir na antiga casa da Lorena, onde mora a mãe desta, buscar uma mala e roupas que a amiga iria lhe doar para levar com ela pro novo país. Lorena até deu um cheque bem gordo pra Lião, para garantir que a amiga não passe fome. E esse capítulo é sensacional, pois a gente vê como a mãe da Lorena tem sérios problemas psiquiátricos. Tudo oriundo da morte de Rômulo — o irmão de Lorena, que acabou deixando o pai dela no sanatório, e a mãe pirou de vez. Até mesmo o jeito que o filho morreu ela distorce, é um capítulo bem doido.

Ana Clara sai para curtir a noite, mas fica tão alterada que acaba passando a noite em um bar. Esse é um dos capítulos mais tensos, onde acredito que teve sim um abuso sexual ali, pois a Ana Clara encontra um velho, que na mente dela atribui ele algo de protetor, quase como um pai que ela não teve, e chega a ir para a cama. É um capítulo bem não linear, com idas e vindas, reescrevendo fatos, mas é extremamente agonizante, pois a menina está alterada, sozinha, e com um homem prestes a fazer sabe lá deus o quê com ela.

Uma noite, quando Lorena está no seu quarto estudando, aparece Ana Clara, toda alterada, suja, cheia de machucados, e gemendo de dores, ela é dominada por uma compaixão ao ver a amiga naquele estado que me emocionou profundamente! A cena dela colocando a Ana Clara na banheira, ela ali tão vulnerável, sendo cuidada pela amiga como se fosse um bebê é de uma beleza que tocou meu coração profundamente. Lorena acolhe, mesmo sendo uma pessoa com tantas inseguranças, é capaz de oferecer esse alento, mesmo que muitas vezes ela seja tão alvo das adversidades da vida quanto sua amiga.

Lorena coloca Ana Clara para dormir, e Lia vem se despedir. Mas quando Lia já está no carro indo embora, Lorena corre ao seu encontro para lhe contar que a Ana Clara está morta. O desespero e a tristeza das duas me fez chorar novamente. Elas acham que se trata inicialmente apenas de um mau súbito, mas Ana Clara não desperta. E então, quase como por uma inspiração divina, Lorena sabe o que fazer: vai arrumar a Ana Clara, perfumá-la, colocar-lhe sua melhor roupa, e vai abandoná-la embaixo de um banco de uma praça, para que a polícia ache que ela acabou tendo algum tipo de overdose e morreu por lá.

Esse último carinho que Lorena tem por ela achei algo tão bonito! Mesmo que façam algum tipo de autópsia nela — como a Lia sugere — Lorena quer oferecer algum tipo de dignidade para a amiga. Como se os legistas fossem tratá-la com mais carinho por ela estar bem arrumada, e não no estado deplorável que Ana Clara chegou. 

Lia foge para a Argélia com o namorado, Lorena volta para a casa da mãe, decidindo dar uma chance ao Guga, e Ana Clara acaba sendo a vítima fatal de uma época conturbada, filha de um pai desconhecido, com a mãe que se prostituía, que se matou na frente dela. Vítima de um abuso, nunca conseguiu se apaixonar de verdade por homem nenhum depois de tudo isso. A única coisa que alegrava sua vida era ter Lorena e Lia em sua vida (e vice-versa), e quando sua morte repentina acontece, até a gente leitor fica sem chão, pois não consegue imaginar aquelas três mosqueteiras sem uma de suas integrantes. 

Tudo isso com um plano de fundo de uma amizade verdadeira, em um dos livros mais bonitos que já li na minha vida.

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