Livros 2024 #28 - O médico & o monstro (1886)
Minha lembrança de "O médico & o monstro" é o filme Pagemaster. Quando criança joguei muito o jogo dele pra PC, e a história de Jekyll e Hyde é muito presente nas partes do Terror. Eu queria mesmo era a versão impressa da Antofágica, que esgotou, mas comprei a versão Kindle — até nos ebooks a Antofágica consegue ter um diferencial. Enfim resolvi sanar a curiosidade e lê-lo, e entendi o quão importante essa obra foi para a literatura mundial.
Fazer uma pergunta é como jogar uma pedra. Você se senta tranquilamente no topo de uma colina enquanto a pedra rola, e então ela faz cair outras. E, sem demora, algum pobre coitado, o último que você pensaria, é atingido na cabeça em seu próprio jardim, fazendo a família mudar de nome.
Obras que se tornaram uma base tão sólida na literatura são ótimas para a gente entender a origem de algo que inspirou tanta coisa por tantas gerações. Obras atuais, do "Clube da Luta" até "Eu, eu mesmo, e Irene" de certa forma beberam dessa fonte do Stevenson, fazendo tudo ao seu próprio estilo, é claro. O conto de uma pessoa que é de um jeito, mas possui um alter ego latente que é o exato oposto, é uma história tão presente no imaginário popular, muito inspiradas por essa obra de Robert Louis Stevenson.
O protagonista da história é o advogado Gabriel John Utterson, que ouve uma história de seu primo, Richard Enfield, de uma vez que viu um homem baixo e estranho andando por uma daquelas vielas escuras londrinas acabou trombando com uma menininha de oito ou dez anos, e a pisoteando sem dó, a ferindo. Em prantos e machucada, a menina naquele estado causou comoção geral nas redondezas. Foi então que o que a atropelou fugiu, mas um médico da redondeza aparece e oferece um cheque para a família da criança para que esqueçam aquilo. A chantagem deu certo, e as cem libras foram pagas, mas o caso continuou na memória do povo ali.
Compreendi que duas naturezas estavam em eterno combate pelo território da minha consciência e, mesmo que eu pudesse diretamente me associar a uma delas, isso só era possível por ser radicalmente ambas.
Esse médico era o doutor Henry Jekyll, um senhor calmo e tranquilo, que sempre atendeu e ajudou toda o povo ali, e era muito bem-quisto por todos ali. Porém sua disponibilidade em ajudar aquele homem que maltratou a criança — o Edward Hyde — pessoa essa que era de uma aparência detestável, todo deformado, baixo, e extremamente sinistro, causou estranheza ali na região.
Livros de terror possuem essa capacidade de prender a gente do começo ao fim. A gente sempre fica querendo ler um capítulo a mais, pois toda a tensão que é produzida ali é algo que só quem leu sabe dizer. O livro tem como plano de fundo uma Londres suja, sombria, com becos perigosos, que não parece nem um pouco a metrópole segura cheia de câmeras de vigilância de hoje em dia. E o livro foi publicado dois anos antes do aparecimento do assassino serial Jack, o estripador, o que sem dúvida deve ter ajudado a tornar essa atmosfera de terror ainda mais densa.
O fantasma de um pecado antigo, o câncer de alguma vergonha oculta, o castigo que chega em passos mancos e lentos, anos depois, quando a memória esqueceu o erro e o amor próprio já perdoou a culpa.
Essa tradução da Antofágica é excelente, não é um texto daquela maneira toda rebuscada com palavras difíceis, mas não deixa de também usar umas terminologias antigas para manter-se a ambientação vitoriana. E além de todo o mistério colocado ali, tem ainda uma pitada de investigação policial, onde o protagonista está mais para uma testemunha ocular genérica, fazendo com que a gente se sinta em sua pele, testemunhando todos os fatos que ali se desenrolavam. Além de tudo o livro possui várias ilustrações incríveis de Adão Iturrusgarai, que vão desde bonequinhos simples, até colagens com escritas que parecem feitas de sangue. E ainda contém um ótimo prefácio e excelentes posfácios.
Minha única crítica é que achei muito curto! Acho que o autor queria mesmo deixar essas coisas mais no ar, fiquei imaginando como deve ter sido chocante ter lido isso na época. A gente se sente perdido, tentando ser levado pela lógica dos protagonistas — por mais que, como eu disse, a gente já conheça a história hoje por conta das inúmeras referências na cultura popular — e tudo o que encontramos é um caminho inconclusivo.
“Esse mestre Hyde, se for investigado”, pensou, “deve ter seus próprios segredos; e, pelo jeito, segredos bem sombrios. Coisas que fariam os piores segredos de Jekyll parecerem uma manhã ensolarada. Isso não pode continuar assim.
Isso poderia ser algo ruim em outros gêneros, mas essa variável é o que torna o terror o que ele é! É pra gente ficar pensando, fazendo teorias, e quando a gente lê vai vendo coisas acontecendo, até que acontecem alguns atos brutais e violentos, conversas desencontradas, nos chocando, e adicionando outras camadas a todo aquele mistério, e tudo isso junto e misturado torna essa leitura memorável. Adorei!
SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!
Jekyll começa a se isolar cada vez mais, deixa de ser aquela pessoa ativa ali na comunidade como era antes, e suas saídas começam a rarear ainda mais. Continua tendo o tal Hyde como seu protegido. Embora essa história esteja muito presente na cultura popular, o autor sempre os trata como duas pessoas independentes — até porque essa coisa da pessoa tomar uma poção e se transformar em outra era uma história muito incomum, e acredito que até de certa forma meio inédita até então.
Mas as palavras mal saíram de seus lábios quando o sorriso desapareceu de sua face, sendo substituído por uma expressão de tão abjeto terror e desespero que gelou o sangue dos dois cavalheiros. Eles só viram tal expressão por alguns instantes, pois a janela foi rapidamente fechada; mas aquele vislumbre foi mais que suficiente para que deixassem o pátio no mais absoluto silêncio.
O autor enfatiza em diversos momentos como Hyde é totalmente o oposto de Jekyll. Enquanto o médico é essa pessoa discreta e bondosa, Hyde é misterioso e vil. Inclusive para aumentar ainda mais o mistério logo no começo Utterson acha que o tal Hyde faz o dr. Jekyll de cativo, que o está maltratando, e tudo mais. E isso é ainda mais reforçado depois que encontram um testamento onde o desejo de Jekyll é que, caso ele morra, que absolutamente tudo seja entregue para Edward Hyde. Era claro que se tratava de Jekyll estar sendo mantido em cárcere por Hyde!
Obviamente os dois nunca são vistos juntos. E num jantar o doutor Jekyll fala que ele pode se livrar do Hyde quando quiser, que ele não está sendo ameaçado por este, e que não há motivos para se preocupar. Até que se passa um ano, e um assassinato é cometido:
Foi quando o sr. Hyde abandonou qualquer controle e lançou o homem na lama da rua. Na sequência, com fúria selvagem, começou a chutar a vítima, despejando sobre ela uma saraivada de golpes que claramente fizeram ossos se partirem, enquanto seu corpo se contorcia sobre o pavimento. Diante de tamanho horror visto e ouvido, a empregada desmaiou.
Hyde se encontra com um senhor chamado Carew, e simplesmente o mata com golpes de sua bengala, largando-a quebrada na cena do crime. Como esse Carew era cliente de Utterson, pedem ajuda para este dar alguma pista que possa levar a polícia até o senhor Hyde. Utterson faz exatamente isso, e junto de um policial da Scotland Yard eles tocam a campainha da casa de Jekyll, e depois de serem recepcionados pela empregada, entram na casa do médico.
Quando interrogam o doutor Jekyll, especialmente sobre um bilhete onde a caligrafia era idêntica ao do médico, incluindo a assinatura do Hyde que também era parecida, tudo o que Jekyll diz é assentir com a cabeça e dizer que tinha sido coagido por Hyde para escrever aqueles termos.
A mistura, que a princípio tinha um tom avermelhado, começou, à medida em que os cristais derretiam, a brilhar em diferentes cores, a ferver e a borbulhar, produzindo um estranho vapor. Subitamente, a ebulição cessou e o composto se tornou roxo-escuro, para logo depois se transmutar em um verde aguado.
O tempo passa, e um amigo em comum de Utterson e Jekyll é apresentado: o senhor Lanyon. Este diz que "sabe de alguma coisa" do que se passa com Jekyll e Hyde, porém ele subitamente morre, misteriosamente. Dias depois uma carta chega para Utterson, onde está escrito que em caso de seu falecimento, que deveria ser destruída sem se ler. Ele decide ignorar isso e abrir o envelope, e dentro dele havia um segundo envelope lacrado com a seguinte instrução: "Não deve ser aberto até a morte ou desaparecimento do dr. Henry Jekyll". Utterson não abre esse segundo envelope, e o guarda no cofre.
Durante uma caminhada Utterson e Enfield passam na frente da casa de Jekyll, e ao ver a janela aberta, eles bisbilhotam e puxam assunto com Jekyll, que está triste e desmotivado. Ambos sugerem para ele sair e dar uma caminhada, mas de súbito o médico fica furioso e fecha a janela na cara deles:
Mas as palavras mal saíram de seus lábios quando o sorriso desapareceu de sua face, sendo substituído por uma expressão de tão abjeto terror e desespero que gelou o sangue dos dois cavalheiros. Eles só viram tal expressão por alguns instantes, pois a janela foi rapidamente fechada; mas aquele vislumbre foi mais que suficiente para que deixassem o pátio no mais absoluto silêncio.
Uma noite o criado de Jekyll toca na casa de Utterson apreensivo, pois Jekyll estava há semanas trancado no escritório sem sair. Utterson vai junto dele, e ao bater na porta no lugar onde estava Jekyll, pedindo para entrar, a voz do outro lado os manda embora, extremamente alterada. O criado de Jekyll acha que o seu chefe foi morto, o que não faria muito sentido, pois quem ficaria junto de Jekyll morto trancado ali junto?
Eles arrombam a porta a base de machadadas, e ao entrar lá encontra no chão o corpo de Hyde, morto, estendido ao chão, vestindo roupas que eram muito grandes para o seu tamanho, que provavelmente eram do médico. Lá encontram as drogas que ele fabricava e tomava, mas não encontram o corpo de Jekyll em lugar algum. Na escrivaninha do médico havia um envelope, para Utterson, escrito na letra do médico. Ao abrir havia um bilhete, pedindo para que Utterson leia a carta que Lanyon o havia endereçado (a que Utterson guardou no cofre). E depois de ler essa carta que lesse um outro documento encontrado ali, que continha a confissão de Jekyll.
Compreendi que duas naturezas estavam em eterno combate pelo território da minha consciência e, mesmo que eu pudesse diretamente me associar a uma delas, isso só era possível por ser radicalmente ambas.
E essa carta de Lanyon era um testemunho de uma visita que ele teve de um homem baixo e grotesco, que não havia se apresentado, que depois de entrar e tomar um líquido muito estranho na sua frente, se transformou em Henry Jekyll. O homem estranho era ninguém menos que Edward Hyde.
O último capítulo é a confissão de Jekyll, que é sem dúvida o ponto alto de todo o livro! Existe muita informação ali, mas é delicioso ler toda a tensão que se está no ar. Lá Jekyll confessa que ele havia criado uma poção para que trouxesse à tona o que havia de mais baixo em sua alma. E ao se transformar em Hyde ele sentia como se estivesse livre, uma sensação agradável, onde ele era uma outra pessoa, e não aquele médico certinho. Era através daquela poção que ele — essa pessoa sempre esforçada, virtuosa e com auto controle — dava lugar ao lado maligno da sua natureza que ele sempre escondeu.
Eu não apenas percebi a distinção entre o corpo físico e a mera aura e o resplendor de certos poderes que formam o espírito, como consegui compor uma droga através da qual esses poderes seriam destronados de sua supremacia, dando lugar a uma segunda forma e uma face substituta. Esta não era nada estranha a mim, que a reconheci de pronto como a própria expressão e essência do que havia de mais baixo em minha alma.
E lá ele confessa todos seus crimes. O problema é que antes ele precisava tomar a poção para trocar de personalidade, mas chega um momento onde ele não tinha controle — dormindo como Hyde, e acordando como Jekyll, por exemplo. Hyde tinha cada vez mais o controle, e o vício pela substância começava a dar sinais de abstinência. Essas perdas de controle que o levou ao assassinato do senhor Carrew.
Sem controle de sua transformação, a situação se complica. Os ingredientes para a fórmula começam a rarear, e ele está tão viciado que precisa dela urgentemente. Tenta fazer algumas alternativas, mas não funciona como deveria. O vício é tão grande, mas ao mesmo tempo ele se vê tanto na necessidade de acabar com tudo aquilo, que ele se tranca de vez em seu laboratório até definhar e morrer, levando junto o Hyde.
Tudo parecia apontar para isto: eu estava lentamente perdendo meu eu original e benigno, enquanto lentamente incorporava meu eu secundário e maligno. (...) Jekyll possuía a preocupação de um pai; Hyde, por sua vez, o desinteresse de um filho.
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