Livros 2024 #29 - Niketche: uma história de poligamia (2002)
Mais uma autora dessa geração de ouro que brilha no continente africano. Tenho um pouco de receio de ler autoras moçambicanas, fiquei muito frustrado com minha experiência com a Isabela Figueiredo e seu português ininteligível de Eça de Queiroz. Foi numa ida à biblioteca que dei uma folheada nessa obra da Pauline Chiziane e simplesmente me apaixonei! Uma leitura fluída, fácil entendimento, e extremamente bem construída.
O livro "Niketche: uma história de poligamia", de Pauline Chiziane, conta a história de Rami, uma mulher casada com Tony, que é um traste em forma humana. Ele possui um emprego bem remunerado, e por conta disso e todos os costumes tradicionais que ele foi criado, se vê no direito de sumir de casa sem dar explicações. Não demora muito para que Rami descubra que o homem que ela se casou possui amantes (no plural).
O coração do meu Tony é uma constelação de cinco pontos. Um pentágono. Eu, Rami, sou a primeira-dama, a rainha-mãe. Depois vem a Julieta, a enganada, ocupando o posto de segunda-dama. Segue-se a Luísa, a desejada, no lugar de terceira-dama. A Saly, a apetecida, é a quarta. Finalmente a Mauá Sualé, a amada, a caçulinha, recém-adquirida. O nosso lar é um polígono de seis pontos. É polígamo. Um hexágono amoroso.
A escrita da Pauline é uma coisa que pega tanto na alma, sabe? A gente vê como a Rami sofre ao se ver traída e abandonada pelo marido. Ela o amava sinceramente, e vê que toda aquela dedicação e fidelidade não lhe serviu de nada, e quando se vê nessa situação seu lamento é um choro profundo que toca em nossa alma quando lemos — sentimos tanto a tristeza sem fim que ela sente, como também nós, leitores, queremos incentivá-la a sair daquele buraco sem fim que sua melancolia a levou.
O abandono é, sem dúvidas, o que nos marca nesse livro. E ao contrário de apenas se focar na vida da protagonista, Chiziane sabe desenvolver muito bem as outras amantes, que possuem também uma participação importante na história. Tony é desenhado sempre a partir da visão da Rami, que embora no começo sente muita dor ao descobrir os casos amorosos do marido, é capaz de ter uma atitude bastante madura ao ir atrás do cerne do que fez Tony ser assim: as origens do machismo dele.
Poligamia é um uivo solitário à lua cheia. Viver a madruga da na ansiedade ou no esquecimento. Abrir o peito com as mãos, amputar o coração. Drená-lo até se tornar sólido e seco como uma pedra, para matar o amor e extirpar a dor quando o teu homem dorme com outra, mesmo ao teu lado. Poligamia é uma procissão de esposas, cada uma com o seu petisco para alimentar o senhor. Enquanto prova cada prato ele vai dizendo: este tem muito sal, este tem muita água, este não presta, este é azedo, este não me agrada, porque há uma que sabe cozinhar o que agrada. É chamarem-te feia, quando és bela, pois há sempre uma mais bela do que tu. É seres espancada em cada dia pelo mal que fizeste, por aquele que não fizeste, por aquele que pensaste fazer, ou por aquele que um dia vais pensar cometer.
A autora é de uma geração anterior da Chimamanda, Adebayo, e Ntshingila (que sou fã de todas!), mas possui aquilo que todas as mais novas possuem: uma capacidade de estruturar uma história que não vejo em lugar algum do mundo. Fico pensando se as tradições da oralidade, das gerações e gerações passando as histórias por meio de contação, que seja o diferencial para que todas essas estrelas africanas consigam constituir suas obras dessa maneira tão ímpar. Saber conduzir a imaginação do leitor de um jeito ancestral, como se tomasse como fonte um arquétipo nosso, capaz de atingir todo mundo, em todas as línguas, pois isso é o que está na base de nossa alma.
Mas o mais interessante é que o livro não se limita a apenas ser um depoimento das dores da Rami, unindo um roteiro magistral e muito bem contado. O andamento é também uma coisa fora de série, pois é totalmente diferente de outros que li que também relatam o abandono feminino: uma atitude é tomada! E ver tudo isso sendo feito é extremamente empolgante e satisfatório, fechando essa tríade que faz desse livro uma das melhores coisas que li esse ano!
A minha vida é um rio morto. No meu rio as águas pararam no tempo e aguardam que o destino traga a força do vento. No meu rio, os antepassados não dançam batuques nas noites de lua. Sou um rio sem alma, não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido, encerrado na solidão mortal.
E complementando o que digo no começo dessa resenha, o português da Chiziane é extremamente acessível para nós, brasileiros. Possuem ali algumas vezes usado palavras como "ralhar" ou "loiça" (essa última a grafia de "louça" que portugueses usam), mas nada que complique a experiência como foi o meu caso com a Isabela Figueiredo.
Esse medo me fez por muito tempo evitar de ler esse livro, mas hoje vejo o quanto tempo perdi sem ter lido essa obra magnífica.
SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!
Como eu adiantei, algo é feito! Tony, apesar de toda a galinhagem, acaba fazendo com que as mulheres se unam. E Rami começa a empoderá-las, a parte mais legal disso é o incentivo que ela as dá para que busquem uma profissão e se tornem independentes financeiramente de Tony. Obviamente não é nada fácil, passa por todas as fases do convencimento, isso sem contar os problemas inevitáveis que vem junto do empreendedorismo.
Mas por que é que um polígamo é feliz quando as mulheres se batem e é infeliz quando elas se entendem?
As tradições patriarcais moçambicanas são de doer. Não que o Brasil não tenha também as suas, mas uma das coisas que mais me chocaram foi que até mesmo a partilha do frango é feita de acordo com o gênero: para os homens da família sempre lhe são servidos as coxas, peito e a moela. Já as mulheres ficam com as partes menos nobres, com menos carne. Até mesmo na amamentação existe diferença: os meninos têm direito a mamar mais que as filhas meninas.
O título, "Niketche", se refere a uma dança feita pelo povo do norte de Moçambique, uma dança ancestral onde mulheres se afirmam como maduras, prontas para a vida sexual e conjugal. Uma coisa linda de se ver, como nesse vídeo do Youtube, com todos os tambores, movimentos, quase que hipnotizante para os homens ali do meio.
Poligamia é destino de homem e castidade é destino de mulher. Um homem mata para salvar a honra e é aplaudido. Uma mulher faz ciúmes e é condenada. Nesta coisa de fabricar homens à sua semelhança Deus falhou em alguma fórmula: Ele permanece solteiro e os homens polígamos.
Rami pede o divórcio, e o Tony além de não querer perder os benefícios, ainda manda um advogado dizendo que o motivo que é o marido que quer se divorciar pois ela não o satisfez (em todos os sentidos). Ela fica revoltadíssima com essa argumento, pois era só o que faltava, jogar a culpa nela, e ela não assina os papéis do divórcio.
Uma das minhas partes preferidas é quando as mulheres todas se unem e resolvem todas se apresentar nuas ao mesmo tempo para o Tony para que ele as tome, e mostre que é um cara realmente viril, que encara todas ali ao mesmo tempo. O cara ao ver aquele monte de mulher nua fica aterrorizado, vomita, quer fugir dali, e começa a dizer que a nudez feminina é um mau agouro, mas na hora que ele queria comer elas ele estava lá, com tudo em pé, né? Essa parte é uma das minhas preferidas no livro!
Nudez de mulher é bênção, maldição, proteção. Há muitos relatos de mulheres nuas acompanhando os guerreiros na hora do combate. Dizem que, durante a guerra civil, os comandos ferozes, armados até aos dentes, levavam sempre uma mulher nua com missangas na cintura à frente do pelotão. Ela avançava, destemida, e exibia-se. O inimigo via-a. Acobardava-se. Desmoraliza-se, porque ver uma mulher nua antes do grande combate significa derrota e morte. O fim do mundo. Nas suas manifestações, os naparamas levam sempre uma mulher nua à frente, seu escudo e proteção.
Nessas saideiras sem destino do Tony ele vai pra França sem dizer nada a ninguém e ao encontrarem um corpo sem identificação, morto numa estrada, totalmente desfigurado, dizem ser o Tony. Rami sabe que não é o Tony, por conta da falta de uma cicatriz atrás da orelha. Mas ninguém a dá ouvidos, e dizem que ela se tornou viúva. Começam então a fazer um ritual onde ela é besuntada com óleo, e tem até os cabelos raspados.
De acordo com a tradição, ela deveria se deitar com Levy, o irmão de Tony. Só que esse Levy era um cara atraente, e Rami transa com ele como nunca antes havia feito com Tony, e ambos se satisfazem bastante um com o outro. Porém, por conta da viuvez, tiram tudo da Rami: nem mesmo o colchão pra dormir deixam para ela. Quando Tony volta, e vê sua casa complemente depenada, por conta de uma falsa constatação de que ele estava morto, ele fica furioso. Foi a vez que a tradição lhe trouxe algo de ruim.
Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu.
Mas como estamos falando de uma estrutura extremamente patriarcal, existem vários momentos em que o Tony colhe muito mais vantagens do que na parte acima. Uma das que mais me revoltaram foi quando Rami vai reclamar com sua sogra, e ela diz que é para ela ficar quieta e aceitar, pois é o que a tradição diz. Que por Tony ser homem, ele tem todo direito de fazer o que ele quiser, com quantas mulheres quiser, pois é assim que o mundo é desde que é mundo. Não há nenhum tipo de empatia à situação da nora, é uma das partes mais revoltantes do livro, especialmente pois se trata de outra mulher.
As mulheres começam a se cansar de dividir o mesmo homem. Elas vão ganhando cada vez mais independência financeira e a emocional acaba vindo junto. Conforme elas vão abandonando Tony, resta apenas Rami, que também diz que não quer mais ele também, e vai se divorciar. Elas ainda são trouxas bondosas e arrumam uma nova esposa para ele, uma menina novinha chamada Saluá.
Agora falam do kutchinga, purificação sexual. Os olhos dos meus cunhados, candidatos ao sagrado ato, brilham como cristais. Cheira a erotismo no ar. A expectativa cresce. Sobre quem cairá a bendita sorte? Quem irá herdar todas as esposas do Tony? Fico assustada. Revoltada. (...) Kutchinga é lavar o nojo com beijos de mel. É inaugurar a viúva na nova vida, oito dias depois da fatalidade. Kutchinga é carimbo, marca de propriedade. Mulher é lobolada com dinheiro e gado. É propriedade.
Tony, frouxo como sempre foi, ao ver aquela menina no auge da sua juventude virginal, diz que não quer ficar com ela pois vai ter que começar tudo do zero, e aturar ela na gravidez, na menstruação, trocar fraudas dos filhos e as noites sem dormir com o bebê chorando. Tony diz que oferecer uma mulher assim para ele não é o que o faz sentir homem — que o que ele gosta é a caçada, a conquista, ele até se compara com um lobo e tubarão, como se ele fosse muito viril.
Ele ainda insiste ficar com Rami, mas ela não quer. As outras mulheres começam a achar outros maridos — aparentemente homens bons, dedicados, que sabem valorizá-las. E para coroar ainda mais o carma contra Tony, no final Rami descobre que aquela noite de amor com o irmão dele a deixou grávida. É a pá de cal final contra esse homem, que só a fez sofrer o livro inteiro!
— O filho é do Levy! Os seus braços caem como um fardo. As três trovoadas que um dia tentou encomendar contra o noivo da Lu hoje atacam-lhe o cérebro, o coração e o sexo e fazem dele um super-homem calcificado no éden da praça. Ele só vê o escuro e a chuva. Fica uns minutos intermináveis a contemplar o vazio. Era uma ilha de fogo no meio da água. Solto-o. Não cai, mas voa no abismo, em direção ao coração do deserto, ao inferno sem fim.
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