Livros 2022 #17 - Se deus me chamar não vou (2019)

 


Eu já contei aqui o quanto eu amo o trabalho da Mariana Salomão Carrara (até tiramos foto juntos!!). Esse livro li pela primeira vez antes da pandemia, e dessa vez decidi comprá-lo para ter aqui na minha estante. Ao relê-lo lembrei de todas as emoções que senti da primeira vez. E dei essa volta toda para reafirmar o quanto acho a Mari Carrara uma das maiores escritoras contemporâneas.

A coisa que eu mais gosto aqui é a simplicidade.

Não tem como achar que estamos lendo de facto algo escrito por uma criança de onze anos. Maria Carmen é grande, acima do peso, e vítima de bullying. No tempo livre ajuda os pais em uma loja de artigos geriátricos — ou, como ela própria chama, "loja de velhos".

Na escola se apaixona pelo Carlos, um menino que era o oposto de todos os outros: sensível e bondoso. Mais pra frente descobrimos que ele é gay, e é vítima de preconceito por parte dos coleguinhas.

Seus pais, ao enviarem um e-mail para um programa de tevê mandarem uma espécie de consultor para dar uma repaginada na loja de velhos, veem o simpático Léo entrar em suas vidas. O que era apenas uma assessoria, vira um trisal: seus pais decidem expandir a relação e colocar o Léo entre eles, com direito ao próprio morar na mesma casa.

Maria Carmen não sabe como terminar capítulos, e menos ainda como terminar o livro. Vai aprendendo que essas coisas acontecem naturalmente, como o caminhar da própria vida. E isso é lindo!

Isso nos leva para a segunda coisa que eu mais gosto no livro, a complexidade.

Ela, que sofre de insônia, começa a chantagear deus para que ela consiga dormir. Nisso ela passa por umas viagens interessantíssimas onde ela ressignifica sua fé, atribui significados e vivências, coisas que muito adulto talvez demoraria anos para fazer o mesmo.

Um nojo indescritível com menstruação e seu próprio cocô. Atribuindo que o amor acabaria se a vissem atendendo ao chamado da natureza, por conta de todo o nojo que ela atribui ao ato, ela decide simplesmente parar de cagar. Só que o corpo não tem como obedecer tal pedido, e conforme a vontade vai chegando, ela vê o quão difícil é tentar segurar isso, apesar do imenso nojo que ela sente, querendo esconder a todo custo o facto de que ela defeca.

E a passagem da "pavonha" — pavor misturada com vergonha — que ela sente quando seus colegas de classe descobrem que seus pais vivem uma relação a três: uma coisa que ela até aceitou relativamente bem, mas que por conta de todo o bullying envolvido na escola, acaba lhe trazendo a sensação da tal "pavonha".

Isso só contando as partes em que eu mais me envolvi! Cada capítulo é uma nova estória, toda ela feita de sem preocupação de linearidade, mas que juntamos todas as peças dela em nossa cabeça.

O maior êxito do "Se deus me chamar não vou" é, por meio da história e vivências ali retratadas de uma menina de onze anos, nós mesmos voltamos nosso olhar para os nossos onze anos. E embora muitas coisas ali pudessem ser experiências doloridas e desastrosas, por estarmos revisitando nossa infância ao mesmo tempo que a infância da Maria Carmen nos é mostrada, tudo flui de maneira natural.

Eu me lembro, por exemplo, que no lugar de prender o cocô, eu morria de medo de entrar no banheiro da escola. Uma vez enquanto eu usava o banheiro, um aluno mais velho passou na quadra (que ficava ao lado) gritando e batendo nos vidros, e eu achei que fosse algum bandido e fiquei aterrorizado. Desde então eu lembro que antes de sair de casa eu fazia xixi e segurava até chegar em casa para fazer de novo — mas eu nunca mais entrei no banheiro da escola depois desse susto.

E ao revisitar esses medos, que talvez para nós adultos sejam besteira, a gente entende e compra tudo o que Maria Carmen vive como trivial, pois sabemos que as coisas acontecem assim. Podemos não achar explicações, mas entendemos que funcionam assim.

A Mari Carrara tem esse dom de sempre tocar em nosso coração em suas obras. Eu sou fã incondicional, e estou aqui para defender minha ídola. Por mais que eu, também escritor, tente entender como suas obras são construídas, acho que jamais terei a capacidade para isso. Ter essa capacidade ímpar de, mesmo sendo um livro em primeira pessoa, fazer com que a história e dificuldades de uma criança de onze anos, façam a gente revisitar nossa própria existência quando tinha a mesma idade, não é para qualquer autor.

Colocar as divagações da personagem, como se fosse uma teia, cheia de ligações, enquanto conta uma história e desenvolve os personagens, parece uma receita fácil na teoria, mas tem que ter muito talento para fazê-lo de maneira magistral. 

Um bom autor é reconhecido quando consegue descrever sentimentos por meio de palavras. Mas um excelente autor é como a Mari Carrara: envolve a nós, leitores, em todo o conjunto da obra, nos fazendo não apenas termos uma ligação emocional com tudo o que acontece lá, como projetar aquilo tudo em nós como algo vivo. E nessa tentativa de desprender a ficção da realidade, olhamos para nosso próprio reflexo. E vemos a nós mesmos e criamos nossos paralelos da Maria Carmen, centrados na nossa própria vivência.

Nota: 10

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