Esperando o que a vida vai nos dar quando menos esperamos.
Não existe lugar ou hora certa para conhecer alguém que faz nosso coração acelerar. A situação pode acontecer repentinamente, mas a sensação é sempre a mesma. Não existe nada tão bom quanto sentir seu coração preenchido. Talvez seja por isso que a solidão sempre abalará nossa espécie. Não apenas a sociedade que incentiva, mas existe algo dentro de nós que pede por isso. Preencher esse nosso buraco com uma boa conversa, troca de olhares, toques, e memórias que ficarão ali para não nos deixar esquecer de como isso é bom.
Ontem era um sábado comum e parado. O frio vinha junto com muita umidade, e os ventos da Paulista pareciam dar a impressão de que estava ainda mais frio. Pessoas falam de amores de verão ou primavera, mas a verdade é que eu nunca gostei de calor. E morando em um mundo cada vez mais quente por conta das mudanças climáticas, essa janela de frio está cada vez menor. Mas sinto que tempos assim mais gélidos são onde minha vida acontece.
Será que o tempo é frio é um aliado? Tenho muitas dessas lembranças boas guardadas em dias bem feios e frios. Mas minha memória é traiçoeira, pois pega tudo o que meu coração palpitou na hora, e pinta o céu de azul. Como aquele tempo friozinho com sol morno, sabe? Dias que para mim o clima é ainda mais perfeito.
Talvez por conta do frio a biblioteca estava mais vazia. Bibliotecas com fácil acesso são complicadas, pois todo tipo de gente costuma frequentar. Especialmente famílias com crianças. E é óbvio que beira o impossível uma criança ser quieta — isso é natural delas, a gente apenas aceita. Mas como naquele dia estava sem crianças, fui sentar em um dos únicos lugares disponíveis das poltronas para leitura, e ali mesmo comecei a ler.
O livro que eu estava lendo era muito forte. Conta a história narrada por uma menina que é filha de uma empregada doméstica que mora em um cubículo de um apartamento de gente da classe alta. Uma história muito chocante que ali perto da metade resolvi dar uma pausa para mim mesmo, e ler algo que estava baixado no Kindle.
Eis que enquanto estou lendo vejo uma garota do meu lado guardando o livro e abrindo seu Kindle também. O dela tinha uma capa linda, toda emborrachada, e naquele momento eu lembrei que precisava muito de uma dessas capas. Talvez essa menina poderia me aconselhar algum lugar que eu possa comprar! Depois de alguns minutos ela fechou o Kindle e foi aí que a perguntei:
— Moça, eu vi que você tem um Kindle, né? Onde você arranjou essa capinha?
E então a conversa começou. Ela de facto manjava muito daquele gadget, me deu várias dicas do que fazer, de como comprar, dos acessórios para protegê-lo, e ambos ficamos abismados quando ela viu que o meu havia o tal "modo noturno" que o modelo dela não tinha. Essa senhorita tinha uma cara de muito nova, e eu estava ali realmente para tirar as dúvidas do Kindle, então eu a ouvia na moral. Foi então que me espantei que ela só tinha cara de nova, pois já tinha vinte anos completos. Minha cabeça tiltou um pouco quando ela disse ser nascida em 2003, mas depois fez sentido, afinal estamos em 2023. Dã.
Teve uma hora que ela disse que precisava ir, mas eu gostei muito da conversa. E sem pretenção alguma a chamei para sairmos para tomar um café, para conversarmos mais. Ela aceitou, mas antes queria passar em uma biblioteca, na outra ponta da Paulista, para conhecer. E de lá poderíamos sair para tomar nosso café.
Nós conversamos sem parar de uma ponta à outra da Paulista. E cada vez mais eu ficava espantado com o quão madura aquela garota era para tão pouca idade. Nós dividíamos os problemas, falávamos sobre nossos medos, e sobre coisas que pareciam esquisitas para os outros, mas que para nós eram perfeitamente compreensíveis.
Ela andava para espairecer, ver o mundo, sentir o vento no rosto. Eu andava para botar a criatividade em movimento, era sempre durante as caminhadas que as melhores ideias apareciam. Eu comentava o quão difícil era ser alguém que aprecia a literatura numa família onde ninguém mais lê. Ela dizia que pegou o hábito da leitura por conta da sua falecida avó, e que mesmo seu pai sendo um autor de livros, ele nunca havia lido nenhuma obra. Ela comentava sobre como via a vida adulta que estava em sua frente como uma grande incógnita, que ela sentia que a qualquer momento sua vida poderia dar uma guinada diferente e virar de ponta cabeça. Eu nesse momento silenciei. Afinal eu tinha exatamente o mesmo pensamento de dúvida do que iria acontecer na idade dela. E é verdade que foi uma bosta grande parte das coisas nesses quase quinze anos que nos separam. E nesse momento me senti impotente, pois não sabia lhe dar uma resposta sobre isso.
Os ruivos cabelos encaracolados dela eram levados pelo vento que cortava a Paulista de maneira reta. O sorriso que ela me dava sempre me faziam ao mesmo tempo abrir um sorriso também, especialmente pois além de ser tão madura e inteligente, ela ainda é muito engraçada. Várias vezes a via fazendo joinha com as duas mãos na altura do rosto, e aquilo só me fazia rir. Aquela voz dela era um misto de uma doçura, mas ao mesmo com muita energia. Suave como uma onda do mar, implacável como um rochedo.
Fomos conhecer a biblioteca do centro cultural, que pessoalmente gostei muito, pois era muito mais silencioso que o do outro centro cultural da Paulista. E fomos tomar nosso café.
— Seu pedido é um chocolate quente pequeno. Mais alguma coisa? — perguntou o atendente, e ela respondeu:
— Sim. Quero que você anote seu instagram no copo.
Não vou negar que me espantei. Mas não durou muito tempo, afinal aquilo ali não era um encontro. A gente mal havia se conhecido, não tinha problema nenhum pedir o contato do atendente do Starbucks. Eu a achei bem corajosa, apreciei aquilo e pensei que adoraria ser daquele jeito. Eu lembro do atendente me olhando com estranheza, acho que pela nossa energia juntos ele também devia achar que estávamos em um encontro. Mas logo ela explicou ao atendente que não era para ela, e sim para uma amiga — que o atendente inclusive se recordava do papo com essa amiga — e essa amiga pediu para ela retornar lá e pedir as redes sociais do rapaz.
Subimos, e nos sentamos numa mesa, e seguimos conversando. Ela disse que precisava voltar cedo, então eu não iria alugá-la ali muito tempo também. Sabe quando um momento bom fica gravado na sua cabeça? Acho que talvez por eu ser uma pessoa que por conta da minha timidez com mulheres não consiga chegar nesse nível de imersão acabe eventualmente gravando isso na minha mente muito mais do que pessoas que provam isso tão corriqueiramente que é normal para elas.
Ao mesmo tempo, eu jamais desrespeitaria uma mulher. Fui criado num ambiente muito machista, e já contei aqui em outro texto que quero ser diferente. Mas eu queria tanto mais daquilo! Havia uma atração ali, que preenchia meu coração, mas ao mesmo tempo eu não lhe faltaria com respeito. Eu dizia pra ela que não era todo dia que eu encontrava uma pessoa para bater um papo tão bom, alguém com quem eu me sinta à vontade. Alguém que eu ficaria muito agradecido se houvesse uma outra vez.
— Meu coração tá palpitando tanto, você não tem noção. E como você mesma disse, que o essencial para uma relação é a sinceridade, entender que posso me abrir com a outra pessoa, vou te dizer a real: eu quero muito um beijo seu — eu disse.
Ela não era apenas uma menina inteligente, que tinha muito mais bagagem do que eu imaginaria ter quando tinha a idade dela. Ela não era apenas uma mulher madura em um corpo de menina, seus vinte anos era apenas um número, sua visão de mundo ia muito além da sua vivência. Ela não era apenas engraçada, mas era esse tipo de pessoa única, uma em um milhão, que não me fazia sentir sozinho dentro da minha visão de mundo esquisita para o resto das pessoas.
Mas ali, naquele momento, mais do que isso, era a mulher mais linda do mundo para mim.
O beijo acabou não rolando, ela disse que ficou um pouco sem graça em dar o fora, e eu disse que não tinha problema nenhum. Como eu a disse, eu não sou um homem que colocaria uma mulher na parede e lhe tiraria um beijo à força. Isso não é, e jamais será do meu feitio. Quando eu avanço, sigo sempre o "Não é não". O mundo mudou muito, e se a gente quiser combater tudo o que achamos que está errado, tem que partir da gente como indivíduos, especialmente em situações como essas.
Como fui sincero com ela, apenas complementei com a verdade. Que havia me sentido atraído por ela. Normal, como acontece com qualquer pessoa em qualquer situação do mundo. Ela sorriu e pôs de volta os óculos.
No final trocamos contatos, e nos despedimos com um abraço. Voltei com meu coração quente como fazia tempo que não sentia.
As aleatoriedades da vida têm esse nome exatamente por isso: como um raio que não sabemos onde vai cair, ou quando uma lufada de vento vai acariciar nossos rostos, ou quando uma estrela cadente rasgará o céu. É exatamente por não termos o controle sobre quando essas coisas irão acontecer que seguimos nossas vidas, esperando o que ela tem para nos oferecer quando menos esperamos.
E obviamente quando acordei naquele dia, eu não tinha a mínima noção que algo que me fez tão bem iria acontecer.
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