Livros 2023 #14 - Mulheres, mitos, e deusas (1966)


Quando comprei o Kindle, fui nos livros que tenho disponíveis no Prime Reading, e pesquisei "feminismo". Entre algumas poucas indicações, vi lá o "Mulheres, mitos, e deusas", que eu já tinha ouvido falar, e peguei emprestado para ler. Um livro que não é apenas um compilado da vida de diversas mulheres — fictícias e reais —, mas também uma abordagem filosófica e antropológica das mesmas, contado com maestria pela mexicana Martha Robles.

Martha Robles organizou o livro de maneira cronológica muito interessante. Na primeira parte, "Origens", ela fala dos grandes mitos da feminilidade primordiais, começando por mitos gregos, egípcios, e romanos, como a Nix, Ísis, Hera, Deméter, como também figuras mitológicas das religiões abraâmicas, Eva, Lilith. A segunda parte, "Da tragédia à história", são mulheres onde o mito se confunde com a realidade, como Cassandra, Olímpia, Cléopatra, e Hipátia. Na terceira parte, "O amor", temos figuras femininas que tiveram destaque por suas formas de expressar o sentimento amoroso: Dalila, Sherazade, Isolda, etc. Na quarta parte, "As fadas", temos a influência européia ao falar de outras figuras proeminentes, como A Dama do Lago, Cinderela, Fadas e bruxas. A próxima e quinta seção temos três rainhas importantíssimas: Catarina de Medici, Elizabeth I, e Cristina da Suécia. Na penúltima seção temos "Caminho de deus", onde vemos diversas figuras da cristandade atual, especialmente mexicanas, como a Guadalupe, Virgem Maria, e outras figuras de hiperdulia. O livro conclui com a seção "Nosso tempo" com importantes figuras do feminismo moderno, como Virginia Woolf, Isadora Duncan, e Simone de Beauvoir.

"Se no abraço sexual o varão se unisse a uma mulher, eles concebessem e perpetuassem sua raça; e, no caso de uma união entre machos, houvesse pelo menos fartura, que eles repousassem e voltassem sua atenção para o trabalho e para as demais coisas da existência", página 8

Essa visão grega parece algo tão distante dos atuais discursos dos crentes, não é mesmo? Isso me lembra muito quando divaguei sobre a importância da homossexualidade na espécie humana, foi bem de encontro, e eu não conhecia esse discurso. Afinal, como a própria autora diz, o amor é o símbolo da equidade que não podia ser maculada nem rejeitada nenhuma das opções. 

No capítulo de Lilith, falam como o papel dela foi importante como uma imagem mítica de transgressão, pois ela não se dobra diante da pressão masculina e prefere transgredir do que a submissão. E isso fez com que desde o começo o feminismo fosse algo condenado, pois quando as tribos começaram a se organizar, e o patriarcado emergiu, para controlar as mulheres, sua figura foi usada para desqualificar a autoridade feminina, a considerando perturbadora, especialmente do leito conjugal.

E sem deixar de lado o facto de que desde a época dos gregos, ter filhos era como uma espécie de passaporte dos homens para a eternidade, pois seria por meio de suas crias que carregariam os valores para as novas gerações. E obviamente eram apenas valores masculinos.

A maior figura disso é que quando Deus criou as mulheres, enquanto Lilith (que eu não sabia, mas tem origem da língua sumérica, "alento") foi assim como Adão criada junta do barro, ela se recusava a "ficar por baixo do homem durante a cópula". Já Eva, criada pela costela, era a submissa. É uma alegoria fascinante do machismo primordial.

"A história de Hera se dissipou, desde então, nos pequenos assuntos com os quais cada mulher repete na intimidade os ciclos de vingança e revolta marital que, finalmente, dariam margem ao estabelecimento do patriarcado característico da nossa cultura", página 57

Eu gosto muito de mitologia grega, mas certos detalhes me fizeram mais sentido com a análise da Martha. Olha que doido: Zeus se disfarça de cuco, e ganha a confiança de Hera, onde ela lhe confia seus sonhos, e quando ele conquista a intimidade o deus sumariamente a estupra, e ela tem que se casar para compensar a perda da virgindade — que o patriarcado coloca como algo que a mulher tem a oferecer.

Quantas vezes não ouvimos que Hera é uma deusa má? Ao invés de a vermos como uma vítima de um abuso, ela virou uma deusa que é lembrada pelos ciclos de vingança e revolta marital. Alguém que deveríamos ter empatia por ter sido uma vítima, vemos como uma deusa ciumenta e possessiva — algo que vem sendo colocado na nossa cabeça desde sempre. Apenas mais um exemplo de histórias sendo criadas por homens.

Uma história muito parecida com a da Alcmena, mãe de Hércules, outra vítima de Zeus, onde ele se disfarça de Anfitrião — o marido real dela — e depois de lhe desvirginar e deixá-la, ela encontra seu real marido, e fica atônita ao ouvir dele que o mesmo não estava lá. Essa parte é muito sórdida e nojenta.

Ponto alto do livro foi o capítulo de Coré, que eu conhecia mais como Perséfone, a esposa de Hades. Não apenas pela tristeza da mãe Démeter querendo notícias da filha, como todo o simbolismo dela, referente às colheitas. Gosto da analogia de Coré ser grãos verdes, Perséfone a espiga madua, e Hécate o cereal colhido. É de uma grande profundidade!

Quando ela aborda Afrodite, eu gostei muito de um paralelo que ela faz com Eros. "Se Eros funde, Afrodite aproxima". Ao mesmo tempo que ela comenta como é cheio de significado o facto de um dos únicos companheiros que ela teve foi o deus da guerra, Ares, pois batalhar e amar são paixões afins, ambos incontroláveis. Em uma outra citação ela define perfeitamente o papel da deusa da beleza:

"Jamais se importou com a fertilidade, pois para isso existiam as deusas protetoras do matrimônio e da família; tampouco praticou virtudes domésticas, e à sua identidade não corresponde qualquer tipo de amarra. Afrodite é para a liberdade o que o calor significa para a chama", página 89.

No capítulo de Circe teve uma outra parte que me chamou a atenção quando a autora comenta que ao contrário dos costumes atuais, na Antiguidade eram os homens que choravam, soluçavam, e derrubavam lágrimas. O papel da pessoa que dominava as emoções eram as mulheres, que conservam a firmeza perante a dor. E eram justamente os homens quem perdiam o controle por conta de extremos sentimentais e cometiam atos de violência — talvez essa última parte não tenha mudado tanto assim.

No capítulo sobre Medeia, a esposa de Jasão, fiquei impressionado com o discurso que a própria faz no mito. Palavras que falam de todas as injustiças que acontecem por apenas ser mulher, sendo citado pela autora como um dos primeiros discursos feministas da história e cá entre nós, essa descrição dos homens é muito o meu pai, meu deus do céu:

– [...] antes de tudo, temos de comprar o próprio marido, com grande desperdício de esperança e de bens a fim de darmos um amo e senhor a nós mesmas. E, creia-me, esse é o pior de todos os males. Separar-se do marido é escandaloso para a mulher, mas não prejudica em nada a reputação do homem. Quando eles se aborrecem em casa, saem às ruas para se distrair. No entanto, quando somos nós a fazer o mesmo, eles não nos deixam sair, alegando que temos de cuidar dos filhos. Asseguram eles que, permanecendo em casa, as mulheres evitam inúmeros perigos, enquanto os homens, pobrezinhos, têm de se afastar a fim de combater nas guerras.

Fiquei impressionado com a história de Olímpia do Epiro, a mãe de Alexandre, o Grande, e em como ela era alguém de muita personalidade e singularidade. Uma mulher forte, que deu à luz um homem que foi um grande conquistador. Ela, independente, dona de si, e que fugia dos estereótipos forçados sobre as mulheres — isso até em suas representações, onde ela nunca é mostrada junto à roca ou novelos de lã.

Em um capítulo sobre as fadas e bruxas, gosto como a autora traça um paralelo interessante entre ambas: fadas regem o destino desde antes do nascimento, já as bruxas alteram a ordem do que foi estabelecida. E, curiosamente, escolheram mostrar fadas como luminosas, belas, bondosas, enquanto as bruxas, sempre velhas, mal-humoradas e feias. E isso não é por acaso. Fadas estão muito mais ligadas ao patriarcado, pois cumprem o destino que foi decidido antes do nascimento, e bruxas desafiam o que foi estabelecido, mudando o destino, logo são retratadas com esse visual medonho e feio.

A análise que ela faz da Cinderela é sensacional. A menina cujo pai viúvo contrai um novo casamento, e a menina ali órfã de mãe tem que realizar extenuantes afazeres domésticos para a madrasta que, tendo filhas limpas e asseadas, contrasta com a Cinderela que vive perto da chaminé recebendo sempre suas cinzas. E que a idealização dela no conto é tão grande que, embora o baile onde ela conhece o príncipe tenha todo aquele romantismo, existe algo de bem machista ali nas entre linhas:

Que o facto dela ter um horário para voltar, é também uma forma de cercear os prazeres dela. Se ela ficasse na festa, e cedesse à tentação de um prazer continuado, ela voltaria a ser a menina miserável de antes, e não conseguiria mais aspirar à ascensão naquela sociedade. Algo como se a beleza dela estivesse ligada à negação de qualquer prazer e felicidade, que uma mulher deveria ser submissa até nesse ponto com suas próprias necessidades.

Quando a autora se debruça sob as aparições marianas, nunca parei pra pensar nisso, sobre a estrutura da nossa própria fé na américa latina: nossa preferência pelas imagens de santas femininas, ao contrário da Europa onde a preferência são os masculinos, mas algo muito mais profundo que isso. A tristeza se tornou a única maneira de se praticar a religiosidade.

E por um lado isso faz muito sentido. Fomos colonizados, haviam povos aqui antes, que foram todos exterminados. Impérios ruíram, povos inteiros foram dizimados, e quem sobrou se sentia como alguém profundamente sozinho e desolado. E quando eram apresentados às figuras marianas, se viam ali representados, e rapidamente a mãe de Jesus virava objeto de devoção. Isso foi com Guadalupe, a dos Remédios, e até a nossa Aparecida (embora essa última não seja citada).

Na última seção, das mulheres do nosso tempo, fiquei muito curioso com a história da Virginia Woolf. Tanto que logo após comecei a ler "Um teto todo seu". Uma escritora que escrevia a dualidade entre o gênio criador feminino que sempre era interrompida pela sua própria condição de mulher — um negócio triste pra caralho, que eu vejo isso enquanto estou lendo sua obra. Enquanto por um lado sua natureza feminina a impelia a harmonizar, as pressões masculinas externas a dividiam, tragando os pedaços de sua integralidade. Uma autora que sempre foi impedida de mostrar o quão genial era pois viveu em uma sociedade onde esse direito era sumariamente negado a elas.

E a infeliz citação de Sartre para Simone de Beauvoir: "O que existe de mais maravilhoso em Simone é que tem a inteligência de um homem e a sensibilidade de uma mulher". Aí é pica, hein mermão. Sua esposa foi um gênio tão grande e celebrado quanto você, não devia ter falado umas besteira dessas achando que isso é um elogio, cacete.

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